O Desejo de Um Morto - capítulo I
“Quando a erva crescer em cima da minha sepultura,
Seja este o sinal para me esquecerem de todo.
A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela.
E se tiverem a necessidade doentia de “interpretar” a erva verde
sobre a minha sepultura,
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural.”
(Fernando Pessoa)
A Morte Chega
O que posso dizer da morte? Acho que não há morte desacompanhada dessa sensação esmagadora de estupor, de ansiedade, de medo e expectativa. Talvez uma morte muito lenta permita um diálogo silencioso que minimize esse estranhamento. Para mim, que tive um infarto mais ou menos inesperado, morrer foi um tremendo susto. E eis aí: morrer é um tremendo susto.
Eu sempre disse que se depois de morrer eu me visse em outro lugar, qualquer lugar, ou até no mesmo lugar, enfim, se ainda restasse algo de mim que pudesse dizer fosse o que fosse, esse algo diria: “Caramba, quer dizer que eu estava enganado!” Sobre o quê? Perguntareis, leitores. Ora, sobre vida após a morte, porque morrer para mim era mesmo o fim, na acepção materialista do termo. Finito. Caput. Morreu, danou-se. Se vou mesmo me danar, porém, ainda não sei. Não acredito nessas coisas.
Não estou aqui a ensinar conceitos. Não sei da morte, principalmente da alheia. Para mim as coisas ficaram um bocado confusas. Lembro vagamente de estar rindo às gargalhadas com o Alfredo imitando o Antônio imitando o Maluf. Meus amigos sabem como eu costumo (é, digo no presente, porque na morte eu ainda encontro muita coisa engraçada) rir fácil e muito. Por isso eles demoraram a perceber que eu não estava engasgando de riso e sim de outra coisa. Foi preciso que eu ficasse de olhos revirados e caísse da cadeira pra que aqueles imprestáveis me prestassem um pouco de atenção, e mesmo assim ainda tive que ficar inconsciente, azul e frio pra que eles parassem de me cutucar e me carregassem até a emergência mais próxima. A essa altura eu não só estava quase morto como olhando a cena mais bizarra deste mundo, sem entender merda nenhuma e morrendo também de medo.
Eu estou olhando pra mim mesmo, deitado no chão do bar do Modesto. Eu continuo me vendo, carregado por quatro bêbados que me pegam por cada um dos braços e pernas e me vão levando, a cabeça pendurada, a boca deitando espuma. Não uma ação coordenada e segura, claro, mas uma trapalhada, cada um puxando para um lado, todos tombando, tropeçando nas mesas, cadeiras e pessoas, gritando instruções malucas que ninguém obedece. Eu estou me vendo colocado no banco traseiro do carro do Alfredo, a cabeça no colo do Antônio depois de ter levado umas três pancadas na porta e no banco. Nada que piorasse o meu estado. Por fim, eu estou esperando junto com meus companheiros que alguém dê atenção ao nosso desespero e me socorra. Esses foram uns momentos bem aflitos. A mim tudo parece um sonho, vejo as coisas em flashes, as vozes chegam cheias de ressonância, as imagens são difusas. Mas o pior foi ser depositado numa maca que ficou estacionada num corredor razoavelmente movimentado, indiferente a mim e minha condição. Fiquei alguns momentos me contemplando nessa bolha de calma e abandono em que me deixaram, mas após um pouco isso me incomodou por demais, e decidi voltar para junto dos meus amigos.
Os detalhes são muito aborrecidos. Telefonemas, explicações, espera. Senti pena dos meus filhos chegando angustiados, a moça com lágrimas nos olhos, abraçada à mãe que também chorava. Ingrata. Quando eu estava vivo não me soube aproveitar. Agora já fui. Opa! Isto não me consola. O fato é que por uns poucos anos de umas farras que não faziam mal a ninguém ela me deixou e ainda se deu o direito de casar de novo com o mosca morta do Miguel, uma besta com esse nome de anjo sonso. É, sobrou pro anjo, sim; pra mim fica estabelecido que ele é sonso e acabou-se. Ainda por cima o idiota usava bigode. Não o anjo, o outro. Sempre desconfiei da capacidade intelectual de homens que usam bigode.
Desculpem-me os bigodudos presentes. E se não gostarem pouco se me dá como pouco se me dão, porque eu já estou morto mesmo e estou cagando para vocês, bigodudos. Nesta altura ainda não “fui a óbito”, expressão abominável da língua falada e da incompetência dos nossos hospitais, e sinto-me muito grande por conseguir ficar penalizado com a dor sincera dos meus dois filhos, do choro da minha menina sempre agarrada com a mãe como quando criança. Até a cara de égua do meu sucessor, andando pra lá e pra cá enquanto tentava encaminhar as coisas, me consternava.
Depois de duas horas finalmente fui tido pelos homens como egresso deste plano. Esta outra expressão acho que recolhi em alguma reunião espírita, na minha curta, pouco frutífera e bastante ecumênica experiência religiosa, acumulada em cinqüenta e dois anos de vida. O Miguel ouvia de um enfermeiro que meu corpo sofreria uma necropsia sumária para confirmar o que parecia evidente: morte por ataque cardíaco. A essa altura meus amigos eram um triste grupo de bêbados apalermados, a adrenalina aniquilara a bebedeira. Estavam com aquela cara estupefata de quem pulou direto para a ressaca. Encostados numa parede, pulando de uma perna para outra. Deslocados e sombrios. O Antônio chegou-se para o Miguel e inteirou-se da situação, ofereceu os préstimos. O chefe da minha família tinha uns ciúmes de mim que eram extensivos a todo o meu mundo, inclusive os amigos, por isso tratou, sendo mais gélido que meu corpo àquela altura, de dispensar a ajuda dos companheiros que certamente para ele ainda eram e sempre seriam um grupelho de bêbados patéticos. Os coitados cumprimentaram Marisa, a ingrata, e abraçaram os meninos da forma que puderam, alegaram que iam buscar umas mudas de roupa no meu apartamento, e mandaram-se. Observei-os afastando-se a passos tristes, e fiquei dividido. Temi olhar em que sombrio espetáculo meu corpo seria devassado. Marisa derramava umas lágrimas, as crianças choravam. O hospital era feio e desolador. Achei que estaria melhor com os caras.
Seja este o sinal para me esquecerem de todo.
A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela.
E se tiverem a necessidade doentia de “interpretar” a erva verde
sobre a minha sepultura,
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural.”
(Fernando Pessoa)
A Morte Chega
O que posso dizer da morte? Acho que não há morte desacompanhada dessa sensação esmagadora de estupor, de ansiedade, de medo e expectativa. Talvez uma morte muito lenta permita um diálogo silencioso que minimize esse estranhamento. Para mim, que tive um infarto mais ou menos inesperado, morrer foi um tremendo susto. E eis aí: morrer é um tremendo susto.
Eu sempre disse que se depois de morrer eu me visse em outro lugar, qualquer lugar, ou até no mesmo lugar, enfim, se ainda restasse algo de mim que pudesse dizer fosse o que fosse, esse algo diria: “Caramba, quer dizer que eu estava enganado!” Sobre o quê? Perguntareis, leitores. Ora, sobre vida após a morte, porque morrer para mim era mesmo o fim, na acepção materialista do termo. Finito. Caput. Morreu, danou-se. Se vou mesmo me danar, porém, ainda não sei. Não acredito nessas coisas.
Não estou aqui a ensinar conceitos. Não sei da morte, principalmente da alheia. Para mim as coisas ficaram um bocado confusas. Lembro vagamente de estar rindo às gargalhadas com o Alfredo imitando o Antônio imitando o Maluf. Meus amigos sabem como eu costumo (é, digo no presente, porque na morte eu ainda encontro muita coisa engraçada) rir fácil e muito. Por isso eles demoraram a perceber que eu não estava engasgando de riso e sim de outra coisa. Foi preciso que eu ficasse de olhos revirados e caísse da cadeira pra que aqueles imprestáveis me prestassem um pouco de atenção, e mesmo assim ainda tive que ficar inconsciente, azul e frio pra que eles parassem de me cutucar e me carregassem até a emergência mais próxima. A essa altura eu não só estava quase morto como olhando a cena mais bizarra deste mundo, sem entender merda nenhuma e morrendo também de medo.
Eu estou olhando pra mim mesmo, deitado no chão do bar do Modesto. Eu continuo me vendo, carregado por quatro bêbados que me pegam por cada um dos braços e pernas e me vão levando, a cabeça pendurada, a boca deitando espuma. Não uma ação coordenada e segura, claro, mas uma trapalhada, cada um puxando para um lado, todos tombando, tropeçando nas mesas, cadeiras e pessoas, gritando instruções malucas que ninguém obedece. Eu estou me vendo colocado no banco traseiro do carro do Alfredo, a cabeça no colo do Antônio depois de ter levado umas três pancadas na porta e no banco. Nada que piorasse o meu estado. Por fim, eu estou esperando junto com meus companheiros que alguém dê atenção ao nosso desespero e me socorra. Esses foram uns momentos bem aflitos. A mim tudo parece um sonho, vejo as coisas em flashes, as vozes chegam cheias de ressonância, as imagens são difusas. Mas o pior foi ser depositado numa maca que ficou estacionada num corredor razoavelmente movimentado, indiferente a mim e minha condição. Fiquei alguns momentos me contemplando nessa bolha de calma e abandono em que me deixaram, mas após um pouco isso me incomodou por demais, e decidi voltar para junto dos meus amigos.
Os detalhes são muito aborrecidos. Telefonemas, explicações, espera. Senti pena dos meus filhos chegando angustiados, a moça com lágrimas nos olhos, abraçada à mãe que também chorava. Ingrata. Quando eu estava vivo não me soube aproveitar. Agora já fui. Opa! Isto não me consola. O fato é que por uns poucos anos de umas farras que não faziam mal a ninguém ela me deixou e ainda se deu o direito de casar de novo com o mosca morta do Miguel, uma besta com esse nome de anjo sonso. É, sobrou pro anjo, sim; pra mim fica estabelecido que ele é sonso e acabou-se. Ainda por cima o idiota usava bigode. Não o anjo, o outro. Sempre desconfiei da capacidade intelectual de homens que usam bigode.
Desculpem-me os bigodudos presentes. E se não gostarem pouco se me dá como pouco se me dão, porque eu já estou morto mesmo e estou cagando para vocês, bigodudos. Nesta altura ainda não “fui a óbito”, expressão abominável da língua falada e da incompetência dos nossos hospitais, e sinto-me muito grande por conseguir ficar penalizado com a dor sincera dos meus dois filhos, do choro da minha menina sempre agarrada com a mãe como quando criança. Até a cara de égua do meu sucessor, andando pra lá e pra cá enquanto tentava encaminhar as coisas, me consternava.
Depois de duas horas finalmente fui tido pelos homens como egresso deste plano. Esta outra expressão acho que recolhi em alguma reunião espírita, na minha curta, pouco frutífera e bastante ecumênica experiência religiosa, acumulada em cinqüenta e dois anos de vida. O Miguel ouvia de um enfermeiro que meu corpo sofreria uma necropsia sumária para confirmar o que parecia evidente: morte por ataque cardíaco. A essa altura meus amigos eram um triste grupo de bêbados apalermados, a adrenalina aniquilara a bebedeira. Estavam com aquela cara estupefata de quem pulou direto para a ressaca. Encostados numa parede, pulando de uma perna para outra. Deslocados e sombrios. O Antônio chegou-se para o Miguel e inteirou-se da situação, ofereceu os préstimos. O chefe da minha família tinha uns ciúmes de mim que eram extensivos a todo o meu mundo, inclusive os amigos, por isso tratou, sendo mais gélido que meu corpo àquela altura, de dispensar a ajuda dos companheiros que certamente para ele ainda eram e sempre seriam um grupelho de bêbados patéticos. Os coitados cumprimentaram Marisa, a ingrata, e abraçaram os meninos da forma que puderam, alegaram que iam buscar umas mudas de roupa no meu apartamento, e mandaram-se. Observei-os afastando-se a passos tristes, e fiquei dividido. Temi olhar em que sombrio espetáculo meu corpo seria devassado. Marisa derramava umas lágrimas, as crianças choravam. O hospital era feio e desolador. Achei que estaria melhor com os caras.
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