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Visões do Abismo

Thursday, April 27, 2006

O Desejo de Um Morto - capítulo III

Ladrões de Corpos


O necrotério era uma construção térrea, um anexo do edifício principal. Os corpos eram depositados numa sala ampla, que ocupava todo um lado de um corredor, antecedido por outra dependência, que fazia as vezes de entrada e recepção ao público. No extremo oposto do tal corredor havia uma porta, que dava para um pequeno pátio, e era por lá que os rabecões chegavam e partiam com suas cargas fúnebres, o outro público que já não espera nada. Por lá também os defuntos eram trazidos, às ocultas dos vivos que transitavam na parte frontal do pequeno complexo. Já início da madrugada, estacionamos no pátio interno do hospital. Rumamos para o nosso objetivo como um furtivo grupo de agentes de uma organização secreta de roubo de cadáveres. Na recepção mal iluminada, um vigilante cochilava numa cadeira, recostado a um estreito balcão. Aproximávamo-nos quando o vimos a uns vinte passos de nós. Estacamos e ficamos em transe, observando o seu sono tranqüilo. Houve um momento de natural desorientação. Afinal, ninguém ali jamais havia feito semelhante coisa. Gilberto tentou mais uma vez desencorajar os outros, que desta vez nem deram-se ao trabalho de responder. Apenas ignoraram-no. Ele pareceu render-se em definitivo. Após alguns momentos de silêncio indeciso, foi Marília quem falou:
- Então, que fazemos agora?
- Diabo, juro que não sei. Estou pensando. – Respondeu Alfredo.
Nisto aproximou-se um homem trôpego, andando curvado e cambaleante. Passou por eles e saudou-os despreocupadamente. Era um senhor de idade avançada, vestindo uma farda surrada. Caminhou para o necrotério, e entrando no corredor que levava à sala dos corpos, de passagem despertou com um tapa na testa o dorminhoco. O homem pulou da cadeira como se tivesse recebido o tabefe de um de seus hóspedes partidos para o além, e xingou bem o velhinho, de quem só ouvíamos as risadas. O atento vigia empurrou com o pé a porta, que ficou entreaberta, e ajeitou-se para retomar sua atividade, jogando o corpo para trás e apoiando a cadeira nas pernas traseiras, em precário equilíbrio. Ficou tudo quieto novamente. A presença de mais uma pessoa deixou-nos mais atônitos. Marília rompeu a indecisão:
- Já sei, vou entrar lá e procurar o corpo de Francisco. Se me encontram digo que sou a viúva.
- É, isso deve dar certo. – Animou-se Alfredo.
- E você vai ter coragem de ir até lá sozinha? – Gilberto pareceu mais assustado que zombeteiro.
- Por que eu teria medo de Chico agora? E os outros... Finjo que estão dormindo.
E lá se foi ela, com o encorajamento admirado dos homens.
Fiquei olhando-a, meio divertido, caminhar a passos furtivos e rápidos para o prédio. Depois me ocorreu que eu não era visível como os demais e poderia muito bem acompanhá-la. Fui.
Quando entrei, o vigilante roncava à minha esquerda, suas pernas penduradas junto à entrada do corredor. Não havia sinal do seu companheiro, o que era preocupante. Talvez tivesse saído pelo outro lado. Avancei. Marília estava adiante de mim, encostada à parede, e espiava o salão envolto na penumbra, iluminado apenas pela luz que vinha do corredor. Havia uma meia dúzia de macas dispostas em duas filas, ocupadas por corpos cobertos até a cabeça com lençóis. Quatro estavam à nossa direita, e dois à esquerda. Só dois deles estavam com o rosto à mostra, os dois do fundo, na parte mais escura do recinto. Entramos a passos lentos. Minha amiga tremia de frio e medo. O primeiro corpo à direita, pelo volume dos seios, era de mulher. Ao lado dela alguém do sexo masculino. Respirando fundo, minha querida segurou uma ponta do lençol. Levou uma eternidade para erguê-lo, com o rosto contraído, e quando finalmente o descobriu, fechou os olhos. Fez uma careta quase de dor, e abriu um olho. Era um homem jovem, de rosto cinzento, e estava de fato bastante morto, mas ainda com os cantos da boca puxados em rígida careta, como se tivesse morrido por um gesto de escárnio contra algo ou alguém. Marília emitiu um gemido abafado e deixou cair o lençol, caminhando para trás. Bateu com as costas no carrinho onde estava a mulher de seios grandes, e pulou para a frente com um grito. Temendo menos os defuntos do que ser descoberta, correu para o fundo da sala, e espremeu-se entre os dois últimos cadáveres, meio abaixada. Passaram-se alguns momentos, e ouvimos ressonar o homem imperturbável que dormia lá fora. Refizemo-nos do susto. Marília adiantou-se dois passos, a cabeça erguida na direção da claridade. Nenhum som. Foi então que o corpo do lado dela virou-se repentinamente. Sua mão suspendeu-se no ar e pousou na nádega da invasora, segurando-a em cheio e com vigor. Voltamo-nos, e vimos dois olhos vermelhos e injetados, e ouvimos uma voz roufenha que inquiriu: - Que é que você quer, minha filha?
Talvez vocês pensem que reagi bem a isso, pelo fato de ser eu mesmo um fantasma. Mas considerem que eu era então um recém-chegado aos assuntos do Além, com os quais aliás nunca tive contato, e minha primeira reação foi de arrepiar carreira tanto quanto Marília, que de fato o fez, berrando com toda a força dos pulmões, mas antes de acompanhá-la tive alguma presença de espírito (sem trocadilhos) e olhei bem para aquela súbita aparição, e foi então que tive a iluminação de que não era ninguém senão o velhinho que passara por nós lá fora, usando a maca para fazer melhor o que seu colega fazia bem no primeiro cômodo. Erguera a cabeça balouçante, zonzo de álcool e sono, e só depois de alguns instantes atinou a situação e saltou para perseguir a invasora, cuja fuga era assinalada por um rastro de gritos agudos. Passou pelo outro vigilante como uma bala e quase matou o infeliz, não só do espanto, mas porque esbarrou nas suas pernas e o fez cair de costas sobre o chão gelado, sem antes deixar de bater o cocuruto na parede onde se apoiara. O velhinho seguia-a, e eu a ele. Passamos a tempo de ver o outro que se levantava com as mãos na nuca, e juntou-se a nós que íamos ao encalço da fugitiva.
Lá fora estavam os meus aventureiros, que ao ver a companheira saltar para a noite com urros de pavor, seguida por dois homens de expressão aparvalhada, afastaram-se atabalhoadamente na direção contrária, tentando dar a impressão casual de quem aspira distraidamente o ar noturno, enquanto passeia diante dos necrotérios. Por puro acaso Marília correu na direção do estacionamento. Os dois funcionários a perseguí-la. Carlos tomou coragem para olhar por cima do ombro, e viu os três se afastando.
- Ei, pessoal, olha só. Eles estão indo pro outro lado. Espera!
Voltaram-se.
- Que diabo aconteceu lá dentro?
- Não sei, porra, ela foi na direção do hospital, não vai acontecer nada de mais por lá. Vamos aproveitar e entrar pra procurar o Chico.
Hesitaram um tanto, mas foram. A urgência os fez serem frios. Encontraram-me onde eu mesmo não chegara a me perceber, ao lado de onde dormitava o velho. Alfredo e Antônio levantaram-me, passando meus braços em volta de seus ombros, e caminhando rápido chegaram mais ou menos desapercebidos até o carro.

Wednesday, April 19, 2006

O Desejo de Um Morto - capítulo II

A Hora Mais Triste


Em algum momento da morte chega a hora mais triste do mundo. Não é uma hora de reflexão serena. Antes é a antecipação da perda. Eu fui um desses tolos que têm a necessidade angustiada de encontrar sentido na existência. Pior, que entendem que não há sentido algum e tentam construí-lo com a razão, e se possível, com as mãos. Das fronteiras difusas do passamento olhei minha vida, e ela passou inteira diante dos meus olhos, e em nenhum lugar residia o sentido. Sinto por esse velho clichê da vida diante dos olhos, mas o que posso fazer? Os clichês mais gastos, imagino, são quase todos verdadeiros. Nem sequer havia eu. Em cada época era um alguém diferente que só conseguia comunicar ao seu sucessor a parte ruim: o medo, a dúvida, o sofrimento, a raiva, os recalques. Agora eu era todos esses sujeitos e nenhum deles. Havia ainda de olhar cada um nos olhos, entendê-lo, talvez chorar e rir com ele e dar-lhe um esporro federal, reconciliar-me com todos, e juntos irmos todos beber e trocar impressões sobre mulheres que não nos amaram e técnicas para curar ressacas. Então eu estaria em paz e pronto para aceitar que minha vida tinha acabado. Pouco me importaria a eternidade vestido de camisolão branco. Para todos os fins práticos, eu não existiria mais.
Os filhos de putas dos meus amigos entraram no meu apartamento feito sonâmbulos. Olharam as paredes como se a primeira vez fosse, como se estivessem cobertas de teias.
Antônio foi-se para o quarto em busca de alguma roupa que ficasse bem como traje de morto. Os outros espalharam-se pelos cantos, quietos demais, os infelizes. Antônio voltou com meu paletó filho único. Murmurou: “Acho que esta está boa.”
Mas os outros nem olharam a mortalha. Ficaram assim tanto tempo que eu já quase me sentia apiedado dos canalhas. Quando já estavam daquele jeito há tanto que a lua ia mudando de posição na janela, Carlos disse meio inseguro, em tom de sugestão: “Aquele grande veado não tinha uma garrafa de uísque decente que ele guardava pra quando comesse sei lá quem?”. “Que é isso, porra? Era pra quando a filha casasse...”. “Não, não, era pra formatura de um dos filhos, não lembro qual!”. Eu não acreditava nos meus ouvidos etéreos. “Tudo bem, seja lá por que motivo fosse, o certo é que o filho da puta morreu e os filhos dele nem devem gostar de uísque tanto assim. Proponho que a gente abra essa porcaria agora, em homenagem ao Francisco, o velho Chico, que nunca mais vai dar no mar.” Eu sempre detestei essa piadinha de dar no mar. Alfredo protestou: “Não, porra, não é certo. O Chico guardava esse uísque aí há uns cinco anos. Imaginem o sacrifício que era pra ele. Isso devia ter um significado. Eu sou contra.” Mas Carlos insistiu: “Vamos procurar a garrafa. Não tem nada de mais. Eu acho que ele ia gostar que a gente bebesse esse troço em sua homenagem.” Antônio e Gilberto concordaram sem grandes escrúpulos. Em poucos instantes encontraram a garrafa e a colocaram sobre a mesinha. Alfredo lavou uns copos e os colocou em volta. Cinco ao todo. Tentei tocar o que me reservaram, mas não tive sucesso. Sentaram à mesa e quedaram-se contemplando o invólucro sagrado. Alfredo quebrou o silêncio. “Porra, nosso amigo morreu, bicho. É verdade isso?” Antônio que respondeu: “É, velho. Todo mundo que fala ‘bicho’ está morrendo. Olha a cara do Roberto Carlos na televisão. Ficamos velhos, meu irmão.” Alfredo prosseguiu: “É isso. A vida passou. Fizemos porra nenhuma e pouco importa que tivéssemos feito. Estamos velhos. Agora é ladeira abaixo.” “É isso mesmo. Vamos abrir logo esta merda que já não temos tempo pra perder!” Antônio violou o lacre da garrafa e encheu os copos como se cresse estar numa cerimônia do chá. Quando terminou não beberam. Ninguém tomava a iniciativa. Gilberto virou o rótulo negro para si, ficou olhando-o, e suspirou: “Pensando bem, dos uísques mais decentes este até que nem é de muita cerimônia. Nós que somos uns bebuns fodidos.” Os outros concordaram. Eu também. Giba ergueu um brinde: “Eu conheci aquele filho da puta há muitos anos. Nem quero lembrar quando, porque faz meu coração ratear também. Era um amigo de primeira. Era um canalha, o infeliz. Foi uma puta duma sacanagem aquele filho da mãe morrer e nos deixar assim, cara, e digo mais, a Oneida diz que não suporta vocês, mas eu tenho certeza que quando eu disser a ela que passei a noite na rua porque o Chico morreu, ela vai dizer que é mentira, vai dizer que não tem tanta sorte assim de vocês morrerem pra eu perder os companheiros de cachaça, mas quando acreditar em mim e ver que estou falando sério, ela vai chorar com certeza. Aliás a sorte de vocês é que eu ainda não estou bêbado, porque senão eu ia chorar como um neném. Vamos beber ao nosso amigo que nos deixou. Ninguém nunca teve um amigo melhor. Um cara que sempre me levou pra casa sem reclamar e nunca vomitou dentro do meu carro. Ao Chico!”. “Ao Chico!”, gritaram os outros. Eu juro que fiquei comovido com um discurso tão pungente. A Oneida vai abrir um corte de uns cinco pontos na cabeça desse frouxo, mas talvez até se arrependa depois.
Melhor faria ele em voltar pra casa, mas devagar foram todos puxando uma conversa atravessada de recordações de farras recentes e antigas, de papos intermináveis dentro da madrugada, e o líquido foi sendo consumido devagar e sem dramas de consciência. Passou-se hora e meia dessa maneira, e era quase meia-noite, quando o celular de Antônio tocou.
No pequeno painel do telefone piscou o nome de Marília. Antônio mordeu os lábios. Ele havia ligado para Marília do hospital, pedira-lhe que aguardasse notícias, mas a essa altura sentiu-se sem forças de falar-lhe da minha morte. Entre eu e ela havia um certo tipo de namoro nunca assumido nem interrompido. Uma amizade extensiva à cama, que vinha de muito. Antônio olhou com ar desamparado para os outros, mostrou o nome brilhando intermitentemente, respirou fundo e atendeu. Começou balbuciando, levantou-se, afastou-se na direção do corredor. Ficamos todos acompanhando a conversa, apreensivos, penalizados. Quando desligou tinha os olhos úmidos. Voltou para a mesa. – Ela chorou muito. – Disse, com um misto de pena pela amiga e por si mesmo. Olhava fixamente para o chão. – Está vindo para cá. – Concluiu. Fincou os cotovelos na mesa como se os braços lhe pesassem. – Não será perigoso, com os nervos abalados, dirigir... – preocupou-se Giba. Mas Antônio o tranqüilizou. – Não, acho que não... Ela não mora longe, e Marília é uma mulher forte. – Olhou o relógio e voltou a apoiar o rosto na mão espalmada. Minha querida Marília era mais que uma mulher forte, era realmente notável. Inteligente, sensível, linda. Tinha uma qualidade rara nas mulheres para mim: bom humor. E era uma guerreira. Surpreendi-me por pensar nela já com saudades, como uma lembrança. Fiquei ainda mais confuso ao me ocorrer que a lembrança era eu. Alfredo deu um gole no seu uísque e disse, olhando os outros com uma expressão de súbita exaltação, como quem lembra de um fato importante:
- Engraçado. Lembram que o Chico sempre falava sobre morte? Ele tinha mania de falar sobre morte, mas não era de um jeito mórbido, era mais uma inquietação, um jeito dele provocar a gente, ele mesmo...
- É. – a voz de Antônio soou lenta, mais como um suspiro. Ajeitou-se melhor na cadeira. Sorriu tristemente e continuou. – Chico sempre dizia que não queria ser enterrado num cemitério, numa caixa de cimento, como ele dizia. E nisso acho que o canalha falava sério. Pedia para ser sepultado ao ar livre, à beira-mar talvez, num lugar em que pudesse nascer alguma coisa sobre o corpo dele. Se possível um coqueiro. Recitava uns versos de Fernando Pessoa que não consigo recordar...
- A imortalidade possível, dizia ele. A alma é transitória, mas os átomos que nos constituem não. Eles existem praticamente desde a constituição do universo, e existirão provavelmente até o seu fim. Formarão outros arranjos, darão forma a outros corpos, e continuarão. A alma morre, a matéria é eterna. Uma bela heresia. Isso não me sai da cabeça.
- Sim, - interveio Antônio – e sabem de algo? Nosso amigo mereceria que a gente cumprisse esse seu desejo. Não consigo imaginar velório, cortejo e cemitério para o Chico.
- Isso mesmo. – Tornou Alfredo, com uma firmeza que fez todos nós olharmos para ele quase como se tivesse baratas andando pelas roupas. Seu rosto refletia a seriedade de quem tomou uma convicta resolução. Alfredo, que era tão ponderado habitualmente.

Confesso que eu estava agradavelmente surpreso. Meus amigos haviam reconstituído tão bem aqueles meus devaneios dos quais zombaram tantas vezes e que eu repetira um outro tanto, que naquele momento fiquei encantado e por que não dizer, agradecido. A conversa iluminou-se de um modo totalmente inesperado. Entreolharam-se, mas foi Alfredo que prosseguiu.
- Que se dane. Há anos ouço vocês dizerem barbaridades, e eu estou sempre fazendo ponderações, sendo comedido, contemporizando... Se nós fôssemos os Beatles eu seria o Ringo. Pois a vida passa rápido e agora eu vou vestir a fantasia de incendiário. Chega de ser bombeiro! Chico queria ser enterrado numa praia. Nós vamos fazer isso por ele!
- Eu faria isso pelo meu amigo. Entramos no hospital antes que chegue a funerária e roubamos o Chico. – O rosto de Antônio era quase solene. Gilberto acompanhava a conversa como mais um delírio alcoólico dos companheiros, mas aquele tom o surpreendeu.
- Quem vê vocês falando assim pode até pensar que é sério. – E soltou uma risadinha nervosa, pegando a garrafa para encher os copos e olhando de soslaio os dois candidatos a ladrões de defuntos. Alfredo segurou o braço dele com mão firme, o gesto de Giba ficou parado no ar. Seus olhos encontraram os do amigo, e Alfredo esperou esse contato durar alguns segundos para dizer da forma mais grave:
- Eu falo sério.
- Eu também. – Secundou Antônio.
Gilberto sentiu-se subitamente deslocado. Seu corpo tremeu ligeiramente. Encarou os dois revoltosos, que pareciam ter entrado num mútuo entendimento que dispensava até as palavras, abriu os braços e franziu a boca como que para falar mas interrompeu-se, duas, três vezes, e por fim zangou-se. Bateu com força as palmas das mãos na mesa e deu um grande muxoxo. Recorreu ao uísque. Deu um grande gole e tornou a olhar Alfredo e Antônio. Os dois tinham assumido um ar de expectativa que o agradou. Encorajado, bebeu mais uma vez, e parecendo satisfeito, virou-se para Carlos, que acompanhava tudo distraidamente.
- Esses dois ficaram sem assunto, Carlos. Que papo mais sem graça esse de roubar o corpo de Chico. Veja se você me ajuda a consertar a conversa.
- Se é pra ir, - disse Carlos, de olhos vesgos para um fiapo de linha que acabara de encontrar na manga da camisa. – vamos logo.
- Porra, mas que merda é essa?
- Melhor mais cedo do que mais tarde. Mas a gente leva a garrafa. – E arrancou o fiapo com um puxão.
Gilberto chegou ao paroxismo.
- Fodam-se vocês três! Pois muito bem, vamos. Acho que é isso que vocês estão querendo. Vamos! Mas depois eu vou lembrar com muito prazer de chamar todos de agitadores de meia pataca, covardes e falastrões!
Arrastou a garrafa de sobre a mesa com um golpe rápido, e rumou rigidamente para a porta. Os outros levantaram-se, divertidos, e seguiram-no depois de esvaziarem seus copos. Eu os acompanhei. Meu único e inútil paletó ficou esquecido sobre uma cadeira.
Chegando à rua, encontramos Marília estacionando à frente do prédio. Ficamos todos compungidos. Ela desceu do carro com uma expressão dolorida e aproximou-se como quem procura abrigo. Ficamos em roda à sua volta. Eu, naturalmente, um mero espaço vazio. As lágrimas correram nas faces deles e mesmo das minhas, ali, imóveis. Antônio estendeu-lhe a mão, e Marília puxou-o para si. Abraçaram-se. Ela desatou um choro soluçado e profundo. Alfredo avançou quietamente e estreitou os dois. Carlos e Gilberto lhes seguiram o exemplo, e ficaram os cinco assim, num abraço mudo e triste que me deixou com uma saudade imensa de estar vivo.
Marília secava com um lenço o rosto moreno, e eu diria que não foi de espanto nem reprovação mas apenas bem-humorada aceitação a expressão com que viu a garrafa na mão de Gilberto. Sem se dirigir a ninguém em particular perguntou:
- Aonde vocês estão indo agora?
Gilberto mudou de tristonho para zombeteiro para responder.
- Agora? Vamos ao hospital roubar o corpo de Chico para enterrá-lo em alguma praia deserta.
A reação de Marília foi a mais natural possível.
- O quê?!
- Isso que você ouviu. Vamos roubar o Chico. – Disse Carlos, tomando a garrafa da mão de Giba para dar um trago direto no gargalo.
- Que diabo de conversa é essa? – Marília e Gilberto exclamaram em uníssono.
Marília ficou mais confusa ainda com a irritação de Gilberto. Diverti-me muito com a maneira como ela deu um passo para trás e olhou os rapazes como eles realmente se encontravam: um grupo de bêbados, passando de mão em mão uma garrafa de uísque já quase vazia, incapazes de ficar de pé sem balançar pateticamente, e com aqueles olhos mortiços de embriaguez, porém com uma certa determinação, a aparência de pessoas que têm uma tarefa a executar... pelo menos três delas. E um quarto elemento que se opunha e no entanto demonstrava-se pronto e disposto a deixar-se levar.
Ela insistiu:
- O que está acontecendo?
Alfredo respondeu com uma simpática desenvoltura.
- Queremos prestar uma homenagem ao nosso amigo. Você sabe que não importa como o julguem, Chico viveu do jeito que quis viver. Agora ele morreu, e vamos enterrá-lo do jeito que ele escolheu. Você é contra isso?
- Mas vocês... estão brincando, não é? Eu sei que vocês são meio loucos, mas pra fazer isso teriam que ser completamente sem juízo. E a família dele? A ex-mulher, os filhos? Eles vão ficar desesperados!
- Você acha que esses cretinos pensaram nisso? – Exasperou-se Gilberto.
Aparentemente os cretinos não haviam pensado. Procuraram apoio um no outro, mas Antônio não deu mostras de ter perdido a serenidade.
- Eles vão fazer o quê? Comprar uma lápide? Enterrar o Chico numa gaveta de cimento e visitá-lo todo dois de novembro? Acender velas pra ele? Ridículo! Você consegue reconhecê-lo nesses rituais idiotas? Marisa largou o Francisco há anos, e mal o deixava visitar os filhos quando eram crianças. Ela não era dona dele vivo e não é dona dele morto. Ele viveu como quis e agora vai ser sepultado como quis. Isto se chama coerência.
- Isso mesmo. – Animou-se Alfredo. – E também se chama amizade.
Marília estava estarrecida.
- Isto se chama loucura! Vocês não podem estar falando sério!
- Venha conosco então. Talvez você possa ajudar.
De repente, por uma misteriosa intuição, ela compreendeu tudo instantaneamente. Como num transe, aquela idéia galvanizara o grupo. Eles estavam além de qualquer ponderação ou dissensão, e toda resistência que se lhes fosse oferecida apenas os prenderia ainda mais na malha hipnótica dos seus argumentos. Mesmo Gilberto não parecia cogitar abandoná-los. E ela, Marília, poderia juntar-se a eles ou não. A decisão dependia de quê? Um motivo? Pensou em mim, pensou nas nossas vidas juntos, em tudo que fizemos e deixamos por ser feito, e tudo era um mosaico de momentos nunca vividos plenamente, por pessoas que não se davam por inteiro porque tinham se conhecido tarde demais, eram velhos demais e tinham vivido coisas demais para se entregar integralmente ao que quer que fosse, homens e mulheres cheios de sonhos amarelecidos, um tipo de gente que transformaria o mundo se tivesse apenas o ânimo de dobrar a esquina. Ela não quis admitir, não quis dizer a si própria que estava em face do monstro, prestes a encarar que era uma mulher já além da meia-idade, adiantada numa maturidade melancólica compartilhada com outros igualmente perdidos, e para Marília o melhor de todos eles acabava de findar e aquele fato a atingia numa extensão e com uma complexidade ainda obscura, esse outro fato mal-resolvido e que provavelmente terminaria mal colocado, brincava com ela, expondo-lhe a possibilidade de transcender seu próprio sentido, mostrando-lhe sua vida como uma seqüência inexorável de acontecimentos inertes e absurdos. Mas um gesto simples em seu sentido podia representar uma ruptura para ela. Sim. Aquilo estava bem. Aquilo era coerente consigo, comigo. Era tarde para a minha covardia, mas não para a covardia dela.

Tuesday, April 18, 2006

O Desejo de Um Morto - capítulo I

“Quando a erva crescer em cima da minha sepultura,
Seja este o sinal para me esquecerem de todo.
A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela.
E se tiverem a necessidade doentia de “interpretar” a erva verde
sobre a minha sepultura,
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural.”
(Fernando Pessoa)



A Morte Chega


O que posso dizer da morte? Acho que não há morte desacompanhada dessa sensação esmagadora de estupor, de ansiedade, de medo e expectativa. Talvez uma morte muito lenta permita um diálogo silencioso que minimize esse estranhamento. Para mim, que tive um infarto mais ou menos inesperado, morrer foi um tremendo susto. E eis aí: morrer é um tremendo susto.
Eu sempre disse que se depois de morrer eu me visse em outro lugar, qualquer lugar, ou até no mesmo lugar, enfim, se ainda restasse algo de mim que pudesse dizer fosse o que fosse, esse algo diria: “Caramba, quer dizer que eu estava enganado!” Sobre o quê? Perguntareis, leitores. Ora, sobre vida após a morte, porque morrer para mim era mesmo o fim, na acepção materialista do termo. Finito. Caput. Morreu, danou-se. Se vou mesmo me danar, porém, ainda não sei. Não acredito nessas coisas.
Não estou aqui a ensinar conceitos. Não sei da morte, principalmente da alheia. Para mim as coisas ficaram um bocado confusas. Lembro vagamente de estar rindo às gargalhadas com o Alfredo imitando o Antônio imitando o Maluf. Meus amigos sabem como eu costumo (é, digo no presente, porque na morte eu ainda encontro muita coisa engraçada) rir fácil e muito. Por isso eles demoraram a perceber que eu não estava engasgando de riso e sim de outra coisa. Foi preciso que eu ficasse de olhos revirados e caísse da cadeira pra que aqueles imprestáveis me prestassem um pouco de atenção, e mesmo assim ainda tive que ficar inconsciente, azul e frio pra que eles parassem de me cutucar e me carregassem até a emergência mais próxima. A essa altura eu não só estava quase morto como olhando a cena mais bizarra deste mundo, sem entender merda nenhuma e morrendo também de medo.
Eu estou olhando pra mim mesmo, deitado no chão do bar do Modesto. Eu continuo me vendo, carregado por quatro bêbados que me pegam por cada um dos braços e pernas e me vão levando, a cabeça pendurada, a boca deitando espuma. Não uma ação coordenada e segura, claro, mas uma trapalhada, cada um puxando para um lado, todos tombando, tropeçando nas mesas, cadeiras e pessoas, gritando instruções malucas que ninguém obedece. Eu estou me vendo colocado no banco traseiro do carro do Alfredo, a cabeça no colo do Antônio depois de ter levado umas três pancadas na porta e no banco. Nada que piorasse o meu estado. Por fim, eu estou esperando junto com meus companheiros que alguém dê atenção ao nosso desespero e me socorra. Esses foram uns momentos bem aflitos. A mim tudo parece um sonho, vejo as coisas em flashes, as vozes chegam cheias de ressonância, as imagens são difusas. Mas o pior foi ser depositado numa maca que ficou estacionada num corredor razoavelmente movimentado, indiferente a mim e minha condição. Fiquei alguns momentos me contemplando nessa bolha de calma e abandono em que me deixaram, mas após um pouco isso me incomodou por demais, e decidi voltar para junto dos meus amigos.

Os detalhes são muito aborrecidos. Telefonemas, explicações, espera. Senti pena dos meus filhos chegando angustiados, a moça com lágrimas nos olhos, abraçada à mãe que também chorava. Ingrata. Quando eu estava vivo não me soube aproveitar. Agora já fui. Opa! Isto não me consola. O fato é que por uns poucos anos de umas farras que não faziam mal a ninguém ela me deixou e ainda se deu o direito de casar de novo com o mosca morta do Miguel, uma besta com esse nome de anjo sonso. É, sobrou pro anjo, sim; pra mim fica estabelecido que ele é sonso e acabou-se. Ainda por cima o idiota usava bigode. Não o anjo, o outro. Sempre desconfiei da capacidade intelectual de homens que usam bigode.
Desculpem-me os bigodudos presentes. E se não gostarem pouco se me dá como pouco se me dão, porque eu já estou morto mesmo e estou cagando para vocês, bigodudos. Nesta altura ainda não “fui a óbito”, expressão abominável da língua falada e da incompetência dos nossos hospitais, e sinto-me muito grande por conseguir ficar penalizado com a dor sincera dos meus dois filhos, do choro da minha menina sempre agarrada com a mãe como quando criança. Até a cara de égua do meu sucessor, andando pra lá e pra cá enquanto tentava encaminhar as coisas, me consternava.
Depois de duas horas finalmente fui tido pelos homens como egresso deste plano. Esta outra expressão acho que recolhi em alguma reunião espírita, na minha curta, pouco frutífera e bastante ecumênica experiência religiosa, acumulada em cinqüenta e dois anos de vida. O Miguel ouvia de um enfermeiro que meu corpo sofreria uma necropsia sumária para confirmar o que parecia evidente: morte por ataque cardíaco. A essa altura meus amigos eram um triste grupo de bêbados apalermados, a adrenalina aniquilara a bebedeira. Estavam com aquela cara estupefata de quem pulou direto para a ressaca. Encostados numa parede, pulando de uma perna para outra. Deslocados e sombrios. O Antônio chegou-se para o Miguel e inteirou-se da situação, ofereceu os préstimos. O chefe da minha família tinha uns ciúmes de mim que eram extensivos a todo o meu mundo, inclusive os amigos, por isso tratou, sendo mais gélido que meu corpo àquela altura, de dispensar a ajuda dos companheiros que certamente para ele ainda eram e sempre seriam um grupelho de bêbados patéticos. Os coitados cumprimentaram Marisa, a ingrata, e abraçaram os meninos da forma que puderam, alegaram que iam buscar umas mudas de roupa no meu apartamento, e mandaram-se. Observei-os afastando-se a passos tristes, e fiquei dividido. Temi olhar em que sombrio espetáculo meu corpo seria devassado. Marisa derramava umas lágrimas, as crianças choravam. O hospital era feio e desolador. Achei que estaria melhor com os caras.

Novo texto chegando!

Meus improváveis leitores, a partir de hoje começo a publicar aqui um novo conto meu. Espero que gostem. Se gostarem, registrem e me dêem ânimo para continuar. Se não gostarem, repensem seus conceitos. :-)
O conto anterior ("Memórias de um Náufrago") era uma brincadeira que nasceu de uma piada. Foi escrito (durante o expediente, confesso. Acho que meu chefe da época nunca lerá isto.) com a intenção de fazer rir um grupo de amigos meus, que recebia os capítulos por e-mail. Este ("O Desejo de um Morto") tem ainda muita leveza e é igualmente despretensioso, mas seu texto é um pouco mais denso. Eu diria que é mais sério. Um abraço!

Thursday, December 02, 2004

Memórias de Um Náufrago: Capítulo XVII - Epílogo.

Eu mal comecei a correr, e ouvi um grande alarido atrás de mim. Olhei por cima do ombro e pasmem! A tribo inteira me perseguia. O Pajé há dias vinha desconfiando de toda aquela movimentação, e apenas me esperou sair, veio atrás de mim com todos os nativos. Meus olhos quase saltaram das órbitas, e disparei feito um louco. O barulho chamou a atenção de Tereza e Juvenal, e eles também desataram a correr. Quer dizer, ela desatou a correr. Ele desatou a se arrastar, como um múmia apressada. O Pajé gritava:
- Espere aí, Missifio! Vamos conversar, rapaiz!!
- Outra hora, Pajé. Agora estou com pressa!
Tereza já chegara à jangada, e a empurrava sozinha para a água. Eu vinha que vinha na carreira, e Juvenal ia chegando. Ela conseguiu por o barco no mar, e corria para pegar as bagagens que estavam com o infeliz. Juvenal nem levantava os braços, e parecia um zumbi. Tereza começou a revistá-lo, e eu não sabia que ela procurava as tais pepitas de ouro. Aparentemente encontrou-as, porque desistiu de ajudar o homem a subir à pobre embarcação. De fato, deu-lhe um bom chega-pra-lá, e partiu sozinha. Juvenal desesperou-se e passou a se debater, procurando caminhar mais depressa, mas foi pior. Eu alucinado, com a tribo toda no meu encalço. O Pajé dizendo:
- Home, que bicho diferente é aquele?
E a mesma idéia estalou na mente de todos os coitados, percorrendo o grupo como uma corrente elétrica:
- É mulher! É mulher! É mulher!
Quando perceberam isso imagine a aflição dos fulanos. Correram mais ainda, e eu na frente já sentia os pés dos primeiros nos meus calcanhares! Tereza se atrapalhara toda, porque as ondas começaram a levar a jangada. Desesperada ela voltou para a praia e arrastou Juvenal para dentro d’água, pôs o canalha de bruços, agarrou um galho comprido na areia, e montou nas costas do infeliz, usando-o como bote enquanto ele se afogava sem conseguir levantar a cabeça paralisada. Finalmente alcancei a praia, e atirei-me nas ondas, nadando feito um alucinado. Tereza assustou-se com meu movimento, e caiu de cima de Juvenal. Ao tentar montá-lo novamente, virou-o sem querer, e adivinhem: O homem estava lá, todo paralisado e em plena ereção. Era mesmo um doente. Gritei:
- Tereza, você vai me trair!
- Que é isso, meu amor! Chegando num porto prometo que mando ajuda pra você!
- Espere por mim, sua safada!
- Espere o escambau! Você ia fugir sem mim.
Enquanto isso Juvenal gemia:
- Miiiinhaa fiiiilhaaaaaaa, veeennnha um pooouucco maiiiis pra direitchaaaa...
Nadando e engolindo água, gritei para ela:
- Espere por mim, minha morena! Lembre dos nossos bons momentos!
- Não te esqueço jamais, meu amor! Um abraço!
- Tereza, acho que vou me afogar!
- Sinto muito mas chorar não posso! Mais sofreu nosso irmão Judas!
Vi que não tinha jeito, ou eu nadava ou ficava. A tribo toda entrara na água, às minhas costas, e todos dando braçadas. Tereza alcançou uma corda que se desprendera da jangada, e pulou de cima de Juvenal, que gemeu:
- Logo agooraaaa que eu tava quaaasseeeee lááááááááá...
A morena sem coração por fim alcançou a jangada. Juvenal alcançou a corda. E eu alcancei Juvenal. Segurei-me nele, tomando cuidado pra ficar longe daquele troço, e cheguei à jangada! Nesse exato momento uma enorme marola arrastou os nativos, e fomos nos distanciando. Eu e Tereza exaustos e sem respirar direito. Juvenal segurando a corda com uma mão, mas firme. Ainda ouvimos a voz do Pajé sendo arrastado de volta pela maré:
- Pelo menos manda uns carregamento de playboy, Missifiooooo...!
E Juvenal, novamente esfolado:
- Alguuuééémm jogue uuummm band-aid...!!
Ficamos dias em alto-mar. Joguei uma bóia para Juvenal, e ele viajou atado a nós pela corda. Eu lhe jogava comida e água, e a paralisia muscular passou muito, muito devagar. Dias depois, quando fomos resgatados, o infeliz ainda estava com aparência de múmia, e gemia:
- Sóóó me arruma uma pomadinhaaa, Macartúrio filho de umaaa...
Estas são as minhas memórias daquele período fantástico da minha vida. Nem tudo eu relatei aqui, porque vocês não iriam acreditar, e já me cansa a mão escrever tanto. Quando chegamos ao continente, Tereza aproveitou meu cansaço e a paralisia de Juvenal para fugir, levando as pepitas de ouro dele. Segundo me disse Juvenal, porém, ela danou-se, porque ele escondera as pepitas verdadeiras, só não me perguntem onde, e deixara umas falsas de chamariz pra traidora. Depois de colocá-las de molho em água sanitária por três meses, vendemos as pepitas e levei Juvenal do hospital direto para uma casa de massagens que eu conhecia. Ficamos internados lá então, por mais seis meses, até Juvenal ser despejado e eu ter que acompanhá-lo, porque ele convencera a dona a fazer conosco um esquema tipo churrascaria rodízio, que a dona descobriu que no caso dele dava um tremendo prejuízo. Fomos para minha casa, e vimos com espanto na televisão, num desses horríveis programas de auditório, que Tereza tinha virado dançarina de uma banda de forró cearense, e apareceu dançando, de minissaia, com um sujeito de colete e cabelo comprido, e parecia feliz. Nunca mais voltei à ilha, mas de tempos em tempos mando um avião jogar um caixote de revistas playboy pro Pajé e a Tribo dos Bilaus Carecas. Juvenal e eu acabamos amigos e sócios. Depois de virarmos personas non-gratas em todos os bordéis da cidade, e termos inclusive motivado a fundação de uma associação dos donos de casas de massagens, apenas para criar regras de defesa contra sujeitos como nós, encontramos a solução para os nossos interesses do modo mais óbvio: fundamos nosso próprio bordel, e fomos morar lá mesmo. De vez em quando tenho que interferir entre Juvenal e alguma das meninas, pedindo pra ele maneirar um pouco. Temos um índice alarmante de anemia entre elas, mas no mais as coisas são tranqüilas. Juvenal é um doente. Bem, ficamos por aqui. A vocês, que me acompanharam, eu agradeço de coração. Agora vão cuidar de suas vidas, que preciso ir lá embaixo apartar mais um coitus ininterruptus. Adivinhem de quem.

Tuesday, November 30, 2004

Memórias de Um Náufrago: Capítulo XVI - O Dia da Partida.

Minha mente fervia. Precisava encontrar um modo de partir sem que Tereza desconfiasse. Eu nem imaginava que ela tinha outros planos para a minha jangada, e aquela malvada agia da maneira mais dissimulada, fazendo seus preparativos de viagem, que na verdade não me incluíam a não ser num possível afogamento não-acidental. O entusiasmo dela em partir era a única coisa genuína, e chegava a ser comovente. Confesso que em alguns momentos eu pensava em levá-la comigo. Fazer o quê? Sou um sentimental. Além disso, sexo em alto-mar não era má idéia. Mas em seguida me lembrava que aquela mulher sem coração havia me espezinhado, usado, agredido, torturado durante meses... e eu adorava! Comecei a aceitar a idéia de tê-la comigo. Se ela me largasse ainda na praia de chegada, estaria bem. Quem gostaria de viver com uma mulher daquelas para sempre?
Marcamos o dia da partida. Na véspera, acomodei toda a bagagem na jangada, com uma preocupação especial com a água potável e a coleção de colares de conchas de Tereza. Juntei um estoque de camisinhas de látex de palmeira, e me considerei pronto. Voltei para a caverna, para dar boa noite à minha amante, e ela ofereceu-me uma xícara de chá. Aceitei. Trouxe-me um copo grande, cheio até a borda, e parecia ansiosa para que eu bebesse. Tomei uns goles, e como sempre acontecia quando aquela desalmada me tratava bem, fiquei profundamente desconfiado. Pedi uns biscoitos para comer na caminhada de volta, e enquanto ela os pegava, derramei o chá num canto. Vocês não imaginam, ou já imaginam, como fiz bem agindo assim. Peguei os biscoitos, fizemos sexo umas duas ou três vezes para passar tempo, e parti na escuridão.
Fiz bem e muito bem, porque mesmo com uns três golinhos do tal chá eu mal consegui voltar para a aldeia, tamanho era o sono. Aquela bandida me drogara. Era parte de um plano que eu nem imaginava. Juvenal, aquele grande canalha, tornara-se cúmplice de Tereza, e na verdade não estavam ainda amantes porque o pênis do bandido continuava chamuscado e cicatrizava devagar. As feridas sempre arrebentavam, porque mesmo queimado o tarado tinha ereções constantes, e até por uma pancada de vento o bicho se assanhava. Um doente! Ele continuava andando nu, e cada vez que encontrava Tereza o estrago era grande!
- Meu filho, mas o que é isso? Nunca viu não foi?
- Minha filha, você num imagina! O atraso é grande, é grande, é grande!
- Mas você não se acanha não? Sou uma moça!
- Deixe disso que você já viu antes e se num viu num sabe o que é. Chegue aqui, chegue, chegue!
- Mas que queres, homem? Tu achas que tens condição de fazer alguma coisa nesse estado?
- Chegue aqui, esfregue minha orelha com essa folha de bananeira pra passar minha aflição, vá!
E cada vez inventava um ritual diferente. Era um maníaco.
Não sei de quem foi a idéia original, mas Juvenal procurou o Pajé, e disse:
- Pajé, Juvenal com dificuldade grande pra dormir. Juvenal precisa remédio forte pra dar sono.
- Pajé faz remédio, Missifio. Pajé faz relaxante muscular pra Missifio tomar e derramar no pingulim de Missifio, e assim Missifio pára de ficar agoniado o tempo todo e pingulim de Missifio cicatriza em paz.
- Isso eu não quero! E se essa coisa me deixar impotente?
- Primeiramente pra deixar Missifio impotente teria que injetar curare na veia de Missifio, e só assim coisa parava de se mexer, porque cá entre nós, Missifio não é normal! Segundamente, remédio tem efeito de umas doze horas, no máximo, e efeito passa. Missifio num se preocupe.
Assim Juvenal bebeu o tal relaxante muscular pra desmaiar o bilau e ele poder sossegar, e levou o sonífero, que entregou para Tereza. A morena me faria bebê-lo, e quando eu acordasse os dois já estariam longe com minha jangada.
Mesmo não tendo tomado o calmante todo, quando Juvenal saiu eu estava mergulhado no sono. O pilantra teve umas duas horas de vantagem sobre mim, e tudo teria dado certo para os dois canalhas, se não fosse o relaxante muscular do Pajé. O Pajé era mesmo um incompetente. Juvenal acordou não só com o pingulim desmaiado, mas o efeito foi tão forte que toda a musculatura dele estava meio amolecida. As sobrancelhas e as bochechas estavam caídas, e os braços molengões, pendurados. As pernas bambeavam e ele não conseguia levantar o pé direito do chão. Os cantos da boca estavam caídos, e lá se foi Juvenal, arrastando uma perna e babando pelos dois lados dos beiços de cão fila. O ódio que sentiu do Pajé foi grande, e pensou em dar-lhe uma bordunada de desagravo e despedida, mas não conseguia nem levantar a borduna, e desistiu. O Pajé dormia feito uma criança inocente, e Juvenal sentiu mais ódio, mas não podia fazer nada e foi embora. Por meu turno, acordei bem disposto com o sono induzido, mas assustei-me com a hora, pois o sol ia alto. Pressenti que havia algo estranho, e me apressei.
Por seu turno, quando Juvenal chegou à praia, muito atrasado por ter arrastado os pés o caminho todo, Tereza esta possessa, mas mesmo assim levou o maior susto ao ver o infeliz com o estado tal e qual de quem tivesse tido um derrame. Falou, espantada:
- Mas que houve com você, criatura? Teve um derrame, foi? Meu Deus! Tá andando como a múmia daquele filme...
Juvenal não se cabia de ira. Mas não podia explicar porque nem falava direito.
- Diixa pra lá... Diipoiiss euu connttoo... Tummeeiii ummm rimméééddiiooo malldittooo... Tô prejuuudiicaaduuu...
Tereza pendurou o que pôde no pescoço dele, e perguntou:
- Trouxe as pepitas, não trouxe? Diga que trouxe senão te mato!
- Trrooouuuuuxeee...
- Então vamos embora, meu amorzinho!
Quando cheguei ao alto do morro, os dois ao longe eram apenas tracinhos, um correndo para a jangada, e o outro arrastando-se atrás. Não entendi a situação de todo, mas compreendi que havia sido traído, e disparei na carreira.

Memórias de Um Náufrago: Capítulo XV - Um Perigoso Encontro.

Naquele momento eu não podia imaginar, mas Juvenal havia me seguido, buscando uma oportunidade de vingança contra mim. O canalha presenciou meu encontro com Tereza, e seguiu-nos até a caverna secreta. Esperou que eu saísse, e me observou partir. Então uma grande agitação se apossou do homem. Ele deduzira toda a situação, e instintivamente a visão de uma mulher de verdade, e ainda mais um exemplar tão bem acabado, causara um tremendo impacto sobre o maníaco, um impacto que nem os homens normais, nem os marinheiros em alto-mar, nem os criminosos sexuais nos presídios, nem os compulsivos por sexo no consultórios psicológicos, poderiam imaginar. Em estado de total agitação, ele não conseguia resolver o que fazer, mas um verdadeiro magnetismo o arrastou para a caverna. Entrou cautelosamente, mas rápido, e viu-se dentro do salão maior. Tereza, ajoelhada no chão a um canto, percebeu sua presença, e virou-se dizendo, amorosa como de hábito:
- Esqueceu o quê, seu demente?...
O susto de ver outro homem foi enorme, mas os marmanjos da tribo não assustavam Tereza desde que ela tinha seis anos de idade e aprendera a atirar uma pedra, e assim ela ergueu-se já com aquele velho tacape na mão, que eu conhecia tão bem, e aproximou-se de Juvenal, falando:
- Muito bem, seu tarado, conheço você. Depois de todos esses anos encontrou meu esconderijo, não foi?
Juvenal estava mudo e trêmulo de emoção. Ela parou diante dele, e o infeliz foi tomado de um tremor intenso, um verdadeiro frenesi. Ficou mudo por vários segundos. Por fim só conseguiu murmurar:
- Puxa, dona, como você é tremendamente... gostosa!
Ao ouvir aquilo um frêmito de irritação percorreu Tereza. Ela deu dois muxoxos, balançou a cabeça vigorosamente, e exclamou:
- Você faz idéia de como uma mulher moderna e independente detesta ser chamada de "gostosa"?
E lascou o tacape contra a cabeça de Juvenal.
Juvenal foi ao chão, mas nem sentiu o golpe. Era como se estivesse em transe, com aquela palavra há anos presa na garganta. Olhou novamente para ela, e repetiu:
- Gostosa!
Tereza saiu de si. Gritou: - Aahhhhhhhhhhh! E mandou outra bordunada contra o corpo caído no chão. Juvenal apagou.
Quando acordou estava pendurado, com os braços estendidos para cima e as mãos presas por uma corda. Tereza estava diante dele, olhando-o com um olho bem apertadinho e o outro muito aberto. Um olho verde, grande e mal. Juvenal tinha um pouco de sangue seco na testa, mas no geral estava bem. Falou humildemente:
- Posso te dizer uma coisa?
- Fala! - Disse ela, irritada.
- Porra, como você é... gostosa! - Teresa ficou histérica. Largou o tacape e começou a andar pela caverna, gritando séculos de queixas acumuladas contra todos os homens viventes e já enterrados. Juvenal aproveitou para admirar o corpo dela, indo, vindo e passando, e não escutou uma palavra. Apenas repetia de si para si: - Puxa, mas como é gostosa...!
Ficaram trinta e seis horas, quarenta e oito minutos e dezenove segundos assim. Ela reclamando e ele chamando-a de gostosa, sem interrupção. Por fim cansaram. Ela sentou-se numa pedra e adormeceu. Ele caiu no sono, com os braços dormentes.
Quando Juvenal despertou, Teresa preparava uma corda, em silêncio. Juvenal viu a grossa tira de corda e teve um mal pressentimento. Disse:
- Moça fantasma não só corpo gostosinho... grande pessoa, Juvenal logo vê, e admira beleza interior de moça.
- Sei. Então pára de olhar pra minha bunda enquanto fala, seu retardado.
Droga! Pensou Juvenal, e fez um esforço para erguer os olhos. Disse:
- Moça amiga de Macartúrio. Macartúrio engana moça. Macartúrio um mala. Macartúrio grande cabra safado. Vale menos do que o que o gato do mato enterra. Macartúrio foge em jangada e deixa moça a ver navios. - Achou o trocadilho engraçado e caiu na risada.
Ela retrucou:
- Vê lá se aquele idiota tem competência pra isso. Acho que até banho de banheira ele toma com colete salva-vidas. Além disso ele me ama.
- Ama nada. Ele mau. Ele bandido. Ele foge e deixa moça no “ora veja!”.
- Como você sabe disso, infeliz? Isso é veneno seu.
- Ele jangada pronta, começa três meses atrás. Só conta agora porque moça descobre. Pretendia fugir em segredo.
Tereza ficou pensativa. Realmente aquilo era fazia sentido. Ficou indignada com a ingratidão do amante.
- Vocês homens são todos iguais, só muda número de sapato! E qual o seu plano?
- Juvenal foge com moça. Macartúrio e homens da ilha ficam no cinco-contra-um para sempre.
Tereza refletiu silenciosamente. Achou que não conseguiria fugir sozinha, e por vingança queria deixar o amante para sempre na ilha, sozinho e esquecido de mulher.
- Pois muito bem! Como iremos viver no continente?
- Mim tem coleção de pepitas de ouro escondidas. Juvenal leva e moça leva vidão!
Tereza achou que poderia arriscar com aquele imbecil, enquanto as pepitas não acabassem.
- Pois bem. Conta direitinho como vamos fazer, benzinho.
E Juvenal expôs seu plano.

Monday, November 29, 2004

Memórias de Um Náufrago: Capítulo XIV - Preparativos de Fuga.

Meus amigos, embora não gostasse de Juvenal, apiedei-me da situação dele. Seu bilau estava bastante queimado, o que parecia estranho, porque não seria conseqüência da queda pela ribanceira. Ao notar isso, procuramos investigar, e descobrimos que o órgão sexual do caracol gigante é lubrificado por uma substância que para um ser humano tinha efeito ácido. Assim, Juvenal, além de ter relações sexuais com uma bizarra criatura de Deus, assava o próprio pênis cada vez que o fazia. Ficamos estarrecidos! E quando o interrogamos sobre aquela aberração, o infeliz apenas respondeu:
- Era um queimorzinho até gostoso...
O homem era mesmo um doente. À medida que foi sarando, porém, ele foi ficando cada vez mais inquieto. A incapacidade temporária numa atividade tão vital pra ele o estava matando. De vez em quando sentava-se afastado dos outros, e chorava:
- Ah, Fanzinha, que saudade!... Você foi a mais quente que eu já encontrei...
E soluçava como um bebê.
Sua ira contra mim se acendeu com toda força. Ele passava repelente de mosquito no corpo e ficava a andar, totalmente despido, pra que as roupas não ferissem seu membro chamuscado. Estou eu ocupado lubrificando o eixo do sol e jogando paciência, e lá vem aquele infeliz cabeçudo e nu. Pára diante de mim e diz:
- Macartúrio, desgraçado, vou te pegar. Tem alguma coisa errada contigo, e vou descobrir.
- Sai de mim, infeliz!
- Tu não perdes por esperar, oh, miserável! Tua batata tá assando!
- O que tá assando é tua salsichinha, num é não?
- Me respeite, cachorro! Por tua causa me envolvi num relacionamento amoroso desastroso e sem esperança com uma criatura que destruiu meu coração. Estou desesperado!
- Mas criatura, tu num vês o desatino do que estás dizendo? Aquilo é um caracol gigante! Estás falando em relacionamento?
- Não zombe, infeliz! Você acha que ela não tem sentimento só porque é um caracol de um metro e setenta e deixa um rastro brilhante por onde passa? Macartúrio desgraçado, você vai me pagar!
E se foi. Temendo um gesto desesperado de vingança, resolvi acelerar minha partida. No dia seguinte, acordei bem cedo e fui até onde estava minha jangada. Estava distraído costurando o último pedaço de tecido na vela que improvisara, quando ouvi passos atrás de mim, e um grito:
- Ah! o que é isso?
Virei-me de chofre, e era Tereza, com as mãos nos quadris e cara de quem descobriu que eu esquecera de puxar a descarga. Sorri como um cretino, e disse a inacreditável frase:
- Oi, meu amor. Você por aqui?
- Pois é! Quem havia de dizer?
E aproximou-se. Rodeou lentamente a jangada, uma, duas vezes, e por fim disse:
- Até que não está mal... Melhor que as que as mulheres fujonas fizeram. Quando você pretendia me dizer que estava pensando em partir? – E havia suspeita e ameaça no seu olhar inquisidor.
- Queria fazer surpresa, meu amor! Ia contar no nosso aniversário!
- Sei... - Que ela fez, tornando a olhar a embarcação.
- Precisamos nos preparar pra partir. Juntar alguma comida, água... Não sabemos quanto tempo ficaremos no mar, até algum navio nos achar. Enfim, a liberdade!
Fiquei preocupado. Eu não tencionava fugir com aquela louca. Além do que, se eu a aborrecesse ela seria capaz de me jogar na água em alto-mar. Como eu faria agora, que a jangada estava pronta, para fugir sem ela? Mas algo pior ainda acontecera sem que eu soubesse. Escondido ao longe, Juvenal observava tudo, e nos seguiu até a caverna de Tereza.

Memórias de Um Náufrago: Capítulo XIII - O Fugitivo.

Passei a me dedicar com afinco à tarefa de construir minha jangada. Assim que ela estivesse pronta partiria daquela ilha esquecida de Deus e dos homens. A dedicação à tarefa tomou minha atenção de tal modo que minha amante acabou percebendo. Estávamos os dois uma noite na caverna. Eu esperava reunir algumas forças para voltar à aldeia, enquanto pensava como improvisar uma vela para a embarcação, e quanta água precisaria levar para a viagem, quando ela, após me olhar profunda e investigativamente por uns minutos, perguntou, manhosa:
- Que foi, benzinho? Você anda tão pensativo!
- Nada não... respondi distraidamente.
- Tenho uma surpresa pra você!
E levantou-se num salto. Puxei alguma coisa pra proteger a cabeça e esperei. Voltou com uma tigela de doce de coco!
- Fiz pra você, meu querido!
Foi bom eu já estar deitado, senão teria caído pra trás.
- Você fez isso pra mim?!?!
- Pois é! Quem havia de dizer?
E me serviu! Eu estava bobo!
- Você tá precisando de alguma coisa? - perguntei, desconfiado. - Apareceu outro escorpião que você quer que eu mate? Tem alguma pedra pra rolar de lugar? Quer que eu ponha a mão na água pra ver se já ferveu?
- Não, meu amor, só quero te agradar. Meu amorzinho merece...
E aconchegou-se toda no meu peito, ronronando como uma gatinha!
- Sabe que você nunca perguntou meu nome? Você é tão frio comigo... - Pasmem! Aquela não podia ser a mesma mulher!
- Mas eu perguntei uma vez e você perguntou pra que eu queria saber! Não lembra?
- Eu tava brincando. Você é todo sensível!
- Mas você mandou eu calar a boca!
- Era só pra testar se você tava realmente interessado ou perguntou por perguntar.
- Ahnnn... - fiz eu, aturdido. - Mas então, como é seu nomezinho?
- É Tereza. - Disse-me ela com um terno sorriso.
- Que lindo, como Tereza da praia.
- Pois é! - Tornou ela, e começou a cantarolar a canção onde dois idiotas discutem por uma mulher que sempre me pareceu que naquela hora deveria estar com um terceiro.
- Você me ama? - inquiriu ela.
- Claro! Sou doido por você.
- Fico feliz, meu amor. Você sabe que eu nunca aprendi a lidar com a rejeição? Ultimamente tenho notado você tão distante, distraído... - e me olhou com aquele ar de psicopata que ela tinha às vezes. Eu já via meu bilau cortado fora e roído pelos siris!
- Impressão sua, minha fofinha. - e me escorreu um suor frio pela espinha.
De volta à aldeia, as coisas pareciam agitadas. Encontrei Juvenal estendido sobre um colchão de palha, gemendo de dor. A tribo toda em volta. O Pajé tentava fazê-lo beber um chá medicinal de capim-santo com coca-cola. Acudi, afobado:
- Que diabo foi isso, meu povo?
Ao me ver Juvenal tentou erguer-se para me atacar, mas a dor o conteve. Ele apenas gemeu:
-Aiiiiiiiiii! Macartúrio maldito! Macartúrio miserável! Macartúrio mentiroso filho de uma...
- Mas que fiz eu, desgraçado? Por que me xingas tanto, infeliz das costas ocas?
O Pajé explicou:
- Juvenal escorrega e se lasca todo por causa de Macartúrio! Macartúrio engana Juvenal! Macartúrio num vale o que gato do mato enterra, mesmo!
- Mas eu nem vi essa besta hoje!
- Tribo nota Juvenal saindo muito, furtivo, carregando flores, roubando comida pra alguém, levando presentinhos... Pajé desconfia de Juvenal ter encontrado mulher fantasma e fazer segredo. Tribo segue Juvenal!
- Mas e daí?
- Tribo flagra Juvenal praticando ato sexual libertinoso e muito feio com criatura da natureza! Juvenal leva susto enorme, cai da ribanceira e se arrebenta todo em moita de urtiga. Bilau de Juvenal inutilizado, Missifio! Perda total! Pajé não põe remédio que não vai botar a mão nos documentos de ninguém.
- Ohhh! - Fiz eu, com uma careta.
- Pois é! Juvenal pegou em merda, Missifio. - Nisso Juvenal olhou pra mim, com fúria.
- Mas o pior é que não era uma mulher, seu miserável, era um caracol gigante, e você me enganou. Estive iludido todo esse tempo! - e virando o rosto pro lado, começou a soluçar que dava até pena.
- Ah, Fanzinha, que desilusão..! - E desatou a chorar.
- Fanzinha? - Perguntei eu. O Pajé me puxou o braço e cochichou: - É como ele chamava o caracol. Respeite a dor do semelhante, Missifio.
- Ahh, siimmm...
Fomos todos saindo da caverna, constrangidos. Juvenal acabou adormecendo, e entre um soluço e outro, ainda sussurrava:
- Ahhh, Fanzinha... você era caladona, mas a gente era feliz...

Memórias de Um Náufrago: Capítulo XII - Um Coração Partido.

Meus amigos, parafraseando Shakespeare, eu vos pergunto: "O que há numa bunda?" Não sejam escatológicos! Por estranha que pareça a questão, é oportuna. Juvenal era obcecado por aquela parte da anatomia feminina. Agora olhava para ela e pensava ver um tronco de coqueiro todo deformado. Oh ironia! Fiquei realmente transtornado com aquela situação, e comecei a pensar nas minhas prioridades neste mundo. Estava ali há mais de seis meses, esquecido da vida, e tudo porque tinha aquela mulher, ao qual estava preso pelo desejo. Aquela mulher que me escravizava, me espezinhava, me tiranizava, vivia pedindo móveis novos e não lavava minha roupa nem cozinhava nada que prestasse. Caí em mim que a vida não era só cair dentro dela, e resolvi que aquela estória já tinha dado tudo que tinha pra dar. Achei que a idéia da jangada não era nada má, e resolvi me mandar daquela ilha esquecida por Deus. Aparentemente Juvenal e o Pajé não desconfiaram de nada, e me senti à vontade para recolher alguns troncos, juntar alguns rolos de corda, e iniciar pra valer a preparação de uma embarcação que me levasse para longe de minha prisão. Além do que esta estória precisava acabar, não é? Numa noite em que eu roia uma perna de caranguejo, cozida com carinho por minha doce fantasma, tive um rompante de romantismo e perguntei a ela:
- Meu amor, o que você acharia de partir daqui comigo? - e minha voz era lânguida.
- Pra onde, seu abobado? Pra morar naquela aldeia com aqueles retardados tarados? Eu ia morrer de tédio. Você é mesmo tonto...
- Não, minha jóia rara, me refiro a partir desta ilha. A ir embora daqui para sempre.
Os olhos dela se acenderam.
- Ah, isso seria maravilhoso!
Senti meu coração trepidar de alegria. Ela levantou num pulo, correu até uma pedra, e retirou uns embrulhos de trás dela, que eu nunca tinha visto. Trouxe-os, e era uma pilha de revistas femininas meio velhas.
- Marcos Pasquim, Fábio Assunção, Luciano Szafir... Que homens lindos, maravilhosos, uns gatos! Imagina chegar ao continente! Cidades cheias de homens fantásticos, meu Deus!
E caiu para trás, rindo de contentamento. Ouvi um barulho de alguma coisa se estilhaçando e até me assustei, mas em seguida me tranqüilizei, vendo que era apenas meu coração.
- Mas meu amor, pensei que nós dois...
- Nós dois o quê? Fossemos ficar juntos para sempre? Você precisa reconhecer que no momento minhas opções são meio limitadas. - e deu uma gargalhada que dava gosto de se ouvir. Prosseguiu: - Você sabe, eu fui uma das que promoveu com mais entusiasmo a evacuação desta ilha. Todas as mulheres resolveram partir, porque estes idiotas nunca saiam para jantar fora, conversavam somente sobre trabalho, dançavam muito mal e só transavam uma vez por semana, depois do Fantástico. Mesmo assim quando não passava Big Brother Brasil. Só que por causa da pressa de fugir escolhemos um dia de maré alta, e acabei caindo da balsa que me levava. As ondas me trouxeram de volta, e as outras não conseguiram me resgatar. Fiquei só, durante anos, me divertindo em assombrar esses infelizes. A praga das mulheres da ilha surtiu efeito, e eles começaram a esquecer como é uma mulher, nada mais justo, já que nunca souberam tratá-las direito mesmo. Muitas vezes me diverti ficando parada no meio da estrada, segurando umas folhas de palmeira, e eles olhavam pra mim e pensavam que eu era um coqueiro-anão. Você me interessou porque era novo no lugar e tinha uma bundinha legal, mas isto não é casamento. Um casamento é feito de coisas muito mais sérias, como plano de saúde e cartão de crédito.
Naquela noite saí da caverna disposto a construir a jangada mais forte que pudesse, fugir ou morrer tentando, e fazer a única coisa possível a um homem quase apaixonado, naquelas circunstâncias: mandar pro inferno aquela desalmada.

Memórias de Um Náufrago: Capítulo XI - O Segredo Ameaçado.

Eu caminhava na escuridão, e já estava próximo da caverna secreta, quando ouvi um ruído abafado às minhas costas, como um gemido. Olhei por cima do ombro por puro reflexo, e ainda tive tempo de ver uma cabeça se abaixando rapidamente atrás de uma moita. Não teria notado nada se o Pajé não andasse sempre com um boné do IBAMA com três penas de galinha espetadas nele, e foram as penas do Pajé que eu vi sumir entre as folhagens. O Pajé era mesmo uma besta. Ainda por cima deve ter caído, porque ouvi alguma coisa rolando, e um "Ui...!" abafado a vários metros de distância. Virei-me para a frente, para não dar a impressão de ter notado algo, e segui meu caminho, muito preocupado. "E agora?", pensei. Estávamos muito próximos do esconderijo, eu já descera a colina e nem tinha como voltar. Havia apenas uma faixa de praia à minha frente. Que fazer? Tive uma idéia. Apressei o passo discretamente, para ganhar tempo, e entrei quase casualmente na gruta.
Ao penetrar no salão natural escavado pelo tempo e pela água na rocha, lá estava minha tirana, e com cara de nenhum amigo. "Que faz aqui, seu estúpido? Esqueceu que estou menstruada?"
- Ora, meu amor, então não posso sentir saudade de você?
- Se acha que vou lavar cuecas sujas suas, meu amor, vou passar um tempo sem bater na sua cabeça até você sarar. Trate de atravessar o oceano a nado e vá atrás da sua mãezinha.
- Não é isso, minha coisa linda, vim te ver. Mas precisamos agir rápido, porque acho que me seguiram.
- O quê?!
E ela ficou tão furiosa que pareceu-me ver raios saindo dos seus olhinhos verdes.
- Sabe, eu estava certa, você não é igual aos outros retardados não! O problema é que você é pior! E me atirou uma pedra, a coisa que estava mais perto da sua delicada mãozinha.
- Tenha calma, meu amor!
- Calma é o escambau! Vão descobrir meu esconderijo por sua causa, seu jumento!
E me atirou outro objeto, mas foi bom, porque como não havia nada perto ela me atirou a camiseta que vestia.
- Pare! Pare com isso! Precisamos agir rápido! Faça o que vou dizer e não discuta pelo menos uma vez na vida! - e pus em prática meu plano.
Daí a alguns minutos o Pajé entrou na caverna, esbaforido. Não precisei fingir surpresa, porque Juvenal pulou logo atrás dele, com aquele olhar de louco, e já com as calças pelos joelhos, gritando: - Cadê ela, cadê ela, diga! Vem cá meu bem, vem cá neném! Vem cá porra!
Gritei, indignado:
- Mas o que é isso? Recomponha-se, seu energúmeno!
- Mas eu quero é recompor mesmo, recompor e tirar, tirar e recompor, até...
- Não! Quero dizer vá-se embora! Vão os dois!
Ele não me deu atenção e ficou olhando em redor. Eu estava sentado, não no chão, mas justamente nas costas de minha querida, deitada entre alguns troncos que pus no chão, lado a lado. Pajé perguntou-me enquanto o outro fuçava tudo:
- Que faz nessa lonjura, missifio?
- Pois é, Pajé, antes que fique sem mais juízo nenhum, feito esse aí, vou partir. Faço uma jangada. Não queria dizer pros companheiros pra não parecer ingrato.
Pajé olhou diretamente para as toras. Eu forrara um pedaço de couro sobre elas, cobrindo parcialmente minha amada, e justamente sua magnífica bunda ficara descoberta. Mas como eu calculara, por causa da maldição do esquecimento os infelizes não reconheceram aqueles montes fendidos no meio como parte da anatomia feminina. O Pajé protestou:
- Ora, mas se é isso Missifio é mesmo ingrato. Nós lhe tratamos tão bem e ocê quer nos deixar?
Juvenal se chegou e também ficou olhando as toras. - Você é mesmo um filho duma égua muito burro. Aqui é justamente o pior lugar pra tentar sair da ilha. O mar bate muito violento. E pareceu pregar os olhos na bunda de minha adorada, como se uma lembrança primitiva se acendesse em sua mente!
- Justamente, mas como aqui é mais reservado, preferi trabalhar neste lugar. Deixei os troncos aqui pra não apodrecerem.
Meu coração quase sai pela boca, porque ainda olhando para as nádegas de minha florzinha, Juvenal abaixou-se, pegou um galho no chão e, imaginem como fiquei suando frio, começou a espetar as bochechas do divino bumbum! Olhei para a cabeça coberta de minha fantasminha, e ela virou o rosto para mim e fuzilou baixinho: "Que se dane o segredo! Se esse doido não parar de cutucar minha bunda agora mesmo vou dar uma porrada nele!" Cobri rapidamente a cabeça dela, e Juvenal, após mais dois cutucões, disse: "Além de tudo você é um burro. Olha como esse tronco está fofo e inchado. Essa madeira deve estar podre."
Nesse momento dei um pulo para a frente, fiquei de pé, e disse: "Bem, já que vocês estão aqui não vou mais trabalhar hoje. Vamos embora!"
Juvenal disse: "Será que isso pelo menos agüenta o teu peso?" E pulou bem nas costas de minha adorada! Só tive tempo de ver os olhos dela se esbugalharem e ouviu-se aquele gemido: Uuhhhh...
- Ih! Tá vendo? A madeira tá fofa e assoviando! Isso é a umidade. Tá podre! Vamos por no fogo pra ressecar um pouco!
- Não precisa! Obrigado por me avisar! Vou trocar essa amanhã!
E arrastei os dois para fora antes que pusessem fogo na coitadinha.

Wednesday, November 17, 2004

Memórias de Um Náufrago: Capítulo X - A Suspeita.

Foi assim que iniciou-se uma relação de amor e ódio, não necessariamente nessa ordem. Fantasma ou não, aquela mulher me tratava como se eu fosse uma coisa, meus amigos, um objeto. Ela simplesmente me catava, me usava e me despachava. Uma maravilha! E se eu tomasse a iniciativa de procurá-la não era certo que seria bem recebido, e a volta da caverna era difícil. Às vezes o lugar estava simplesmente vazio, como se ninguém o habitasse nem o houvesse habitado nunca. Eu voltava para a aldeia então, com calafrios de terror. Às vezes ela me dizia que não estava a fim, alegava dor de cabeça, me acusava de não vê-la como pessoa! Mas o mais humilhante era quando eu queria discutir a relação, e ela dizia: "Quer discutir a relação? Você é meio gay, num é não?" Ou pior ainda: "Que relação? Hoje não fizemos nada ainda." Era uma bandida. Eu vivia com um terror constante de falhar, porque ela me punia por qualquer frustração que sentisse, e o pior é que com o tempo comecei a encarar isso como parte do nosso ritual particular...
Passaram-se, sei lá, uns seis meses assim. A vida era boa. Os nativos tinham se convencido de que a mulher misteriosa não era de carne e osso, e como a falta de mulheres não desenvolvia neles nenhum gosto homossexual, dedicavam-se aos mais variados passatempos para entreter a falta de sexo. Nem todos se masturbavam, porque tinham medo de ter orgasmo pensando em ferros de passar. Às vezes eles se reuniam à noite, e eu passava horas descrevendo para o grupo a anatomia feminina. Os infelizes ficavam tão agradecidos que me tornei bastante prestigiado. Fui imprudente, porém, porque duas pessoas notaram que eu não sucumbia à maldição do esquecimento, e desconfiaram da razão. Eram eles o pajé e Juvenal. Para despistar às vezes eu descrevia minha antiga vizinha de baixo, que era lésbica, mais bigoduda do que eu, e sargento da Polícia Militar, ou variava mais ainda, e mais de uma vez fiz a tribo inteira se masturbar pensando em vacas holandesas, geladeiras frost free e torres de alta tensão, enganados. Meu amigo Maúr, lamentavelmente, também sucumbira à maldição, e era triste vê-lo lembrar de sua saudosa esposa e descrevê-la como uma velha Parati que ele tinha, confundido. "Ah quando ela passava aqueles limpadores de pára-brisa lindos na minha cara...!" E desatava a chorar. Era triste. Eu não deixava de imaginar como deviam ser os tais limpadores.
Juvenal esquecera como as mulheres eram mas não se rendia. Passava tanto tempo com a mão na água gelada do riacho que já andava tremendo-se todo, e seus lábios estavam sempre roxos. Por causa da água fria ele já escapara de uma gangrena no pingulim, mas insistia. O pajé ficara obcecado por inventar uma cura para a maldição, mas o infeliz só conseguia fazer todo mundo sofrer dores de barriga coletivas. Certa feita, fez uma beberagem tão miserável que os pelos pubianos de todos caíram, e a partir desse dia passaram a se chamar Tribo dos Bilaus Carecas. O fracasso o deixava maluco, mas o homem não desistia. Um dia eu estava descansando, esperando a hora de visitar minha torturadora, quando os dois aproximaram-se de mim, ressabiados. Esperei, sonso, e o pajé falou:
- E aí, Missifio, como lhe vai?
- Assim, assim. Em casa todos bons?
- Vamos levando com fé.
- Diga que mandei lembrança.
- Agradecido, conhecido. - e ficamos todos calados, olhando as unhas das mãos. O pajé continuou:
- Missifio anda pálido, com umas olheiras de dar medo. Quer um chazinho? Talvez Missifio esteja com verme.
- Ora, que gentileza. Outro dia tomamos.
- Apareça!
- Levo a família?
- Ora, fique à vontade! Fazemos um churrasco!
- Eu levo a cerveja!
Juvenal teve um gesto contido de impaciência. Pajé prosseguiu:
- Missifio mora na ilha tem o quê? Seis, sete meses?
- Por aí. Pra que contar?
- Pajé nota que Missifio ainda lembra de mulher apesar da maldição. Como pode?
- Aqui entre nós, pra não frustrar os outros, eu uso muito a imaginação. Invento!
- Mas Missifio é bem convincente...
- Brigado!
- Ocê merece!
Aí Juvenal estourou. Pulou em cima de mim, feito louco!
- Deixe de enrolar, seu safado! Você a achou, não foi? Confesse! Confesse! Confesse!
O homem estava histérico! Começou a me estrangular, e eu mal respirava. O pajé o tirou de cima de mim e o arrastou, mas na distância eu ainda ouvia seus gritos. "Egoísta! Egoísta! Quer só pra você, é? Eu nem tenho mais digitais, tô com as mãos cheias de calos! Tô quase com gangrena! Você tem que dividir! Você tem que dividir..." Fiquei recuperando o fôlego, mas não levei o descontrole de Juvenal a sério. Foi um grande erro, e naquela noite, quando saí para meu encontro secreto, vultos me seguiram na escuridão.

Memórias de Um Náufrago: Capítulo IX - Encontrei-a! E Agora, Como Fugir Dela?

Pela manhã juntei as minhas roupas e um pouquinho de energia que ainda tinha e fui-me dali, com as pernas tremendo, mas feliz, eu achava. Não encontrei o menor sinal de minha fantasminha, o que me fez voltar a questionar se ela não era de fato um ser de outro mundo. Estava meio desconcertado com a falta de jeito da situação toda. De volta à tribo, havia poucos nativos presentes. Explicaram-me que estavam cuidando das tarefas básicas enquanto os outros procuravam a mulher fantasma. A quem perguntou, eu disse que fora tão longe na busca que resolvera dormir do outro lado da ilha. Ninguém desconfiou de minhas olheiras nem do tremor ou da palidez, e passei o resto do dia dormindo para recuperar as energias. Quando acordei era noite alta, o céu estava coalhado de estrelas. Continuei deitado, com as mãos cruzadas na nuca, e estava gostoso ficar assim sem pensar em nada. Foi um grande susto quando senti um cutucão em minha perna, e susto maior ainda quando a vi, e lá estava ela ao meu lado, como saída do nada, em plena aldeia. Ela fez sinal de silêncio, com aquele lindo indicador erguido, e levantando-se, fez-me sinal para acompanhá-la. Fui como um autômato. Caminhamos para fora da aldeia, entre os nativos exaustos e adormecidos, Só Juvenal tinha um sono inquieto, e falava: "Isso, assim, agora pegue esse pote de manteiga dinamarquesa, isso, traga a bezerrinha pra cá..."
Seguimos a trilha secreta na noite enluarada. Ela indo à frente, apenas olhando de vez em quando por cima do ombro. Segura e confiante de que eu ia após o seu corpo de sereia. Eu andando como se estivesse hipnotizado. Fomos horas assim, até chegar à caverna. Dessa vez havia uma claridade que enchia tudo, permitindo enxergar com nitidez. Ela havia preparado um lençol no chão, à guisa de cama, e sem qualquer preâmbulo nem uma única palavra mandou-me deitar lá. Só então tentei alguma reação:
- Olha, precisamos conversar, quero saber quem é você, o que faz aqui...
- E eu quero que você fique peladinho, querido. Vamos, tire a roupa! - ordenou, mas sua voz era tranqüila e ela sorria de um modo que me irritou.
- Espera aí, não é que eu não queira, pelo contrário, você é linda, é uma maravilha, mas...
- Mas o que, meu coraçãozinho dos outros?...
E me empurrou. Caí de costas sobre o fino colchão, e ela me despiu da cintura pra baixo. Eu estava excitado e contrariado. Depois ela começou a se despir também, o que me deixou contrariado e excitado. Mas algo em mim se rebelou. Eu era o macho ali, e aquela situação estava decididamente fora do meu controle!
- Olha, não é assim, primeiro vamos...
- Tenha uma ereção. - o tom foi até casual, displicente e seco. Mas bastante imperativo.
- O quê?
- Tenha uma ereção, você é surdo?
- Peraí! E se eu estiver com dor de cabeça? Você acha que eu tenho algum botão que você aperta e...
- Num entendeu ainda não? Tenha uma ereção! Agora!!!! - E ela pela primeira vez se exaltou. Foi então que me transtornei de vez, porque senti um puta medo! Na escuridão pareceu que os olhos dela se acenderam e seu cabelo se eriçou! Mas meu orgulho estava encolhido junto com meu pênis, e vi que precisava me impor:
- Pois num é assim não, rapaz! Sem um papo, sem uma preparação...
- Como é? - E ela deu uma risada que ressoou pela caverna. – Preparação? Meu filho, isto é uma transa, não é vestibular não. Que porra de conversa mole é essa de preparação? Aliás, falando em "mole"... - e desatou a rir. Fiquei vexado como uma adolescente de treze anos. Ou pior ainda, UM adolescente. Ela andou até um canto da caverna e voltou com um porrete que eu já conhecia, bem firme numa mão, e um pote de margarina na outra.
- Meu amor, você não entendeu. Eu te trouxe aqui pra gente transar, isto não é casamento não. E eu te digo com toda certeza: Um de nós dois vai sair comido daqui hoje, eu garanto! - E o tom dela, meus amigos, não admitia dúvidas. Não posso continuar, porque fiz um juramento eterno: Além de meu psicólogo, ninguém jamais saberá o que aconteceu naquela noite.