O Desejo de Um Morto - capítulo III
Ladrões de Corpos
O necrotério era uma construção térrea, um anexo do edifício principal. Os corpos eram depositados numa sala ampla, que ocupava todo um lado de um corredor, antecedido por outra dependência, que fazia as vezes de entrada e recepção ao público. No extremo oposto do tal corredor havia uma porta, que dava para um pequeno pátio, e era por lá que os rabecões chegavam e partiam com suas cargas fúnebres, o outro público que já não espera nada. Por lá também os defuntos eram trazidos, às ocultas dos vivos que transitavam na parte frontal do pequeno complexo. Já início da madrugada, estacionamos no pátio interno do hospital. Rumamos para o nosso objetivo como um furtivo grupo de agentes de uma organização secreta de roubo de cadáveres. Na recepção mal iluminada, um vigilante cochilava numa cadeira, recostado a um estreito balcão. Aproximávamo-nos quando o vimos a uns vinte passos de nós. Estacamos e ficamos em transe, observando o seu sono tranqüilo. Houve um momento de natural desorientação. Afinal, ninguém ali jamais havia feito semelhante coisa. Gilberto tentou mais uma vez desencorajar os outros, que desta vez nem deram-se ao trabalho de responder. Apenas ignoraram-no. Ele pareceu render-se em definitivo. Após alguns momentos de silêncio indeciso, foi Marília quem falou:
- Então, que fazemos agora?
- Diabo, juro que não sei. Estou pensando. – Respondeu Alfredo.
Nisto aproximou-se um homem trôpego, andando curvado e cambaleante. Passou por eles e saudou-os despreocupadamente. Era um senhor de idade avançada, vestindo uma farda surrada. Caminhou para o necrotério, e entrando no corredor que levava à sala dos corpos, de passagem despertou com um tapa na testa o dorminhoco. O homem pulou da cadeira como se tivesse recebido o tabefe de um de seus hóspedes partidos para o além, e xingou bem o velhinho, de quem só ouvíamos as risadas. O atento vigia empurrou com o pé a porta, que ficou entreaberta, e ajeitou-se para retomar sua atividade, jogando o corpo para trás e apoiando a cadeira nas pernas traseiras, em precário equilíbrio. Ficou tudo quieto novamente. A presença de mais uma pessoa deixou-nos mais atônitos. Marília rompeu a indecisão:
- Já sei, vou entrar lá e procurar o corpo de Francisco. Se me encontram digo que sou a viúva.
- É, isso deve dar certo. – Animou-se Alfredo.
- E você vai ter coragem de ir até lá sozinha? – Gilberto pareceu mais assustado que zombeteiro.
- Por que eu teria medo de Chico agora? E os outros... Finjo que estão dormindo.
E lá se foi ela, com o encorajamento admirado dos homens.
Fiquei olhando-a, meio divertido, caminhar a passos furtivos e rápidos para o prédio. Depois me ocorreu que eu não era visível como os demais e poderia muito bem acompanhá-la. Fui.
Quando entrei, o vigilante roncava à minha esquerda, suas pernas penduradas junto à entrada do corredor. Não havia sinal do seu companheiro, o que era preocupante. Talvez tivesse saído pelo outro lado. Avancei. Marília estava adiante de mim, encostada à parede, e espiava o salão envolto na penumbra, iluminado apenas pela luz que vinha do corredor. Havia uma meia dúzia de macas dispostas em duas filas, ocupadas por corpos cobertos até a cabeça com lençóis. Quatro estavam à nossa direita, e dois à esquerda. Só dois deles estavam com o rosto à mostra, os dois do fundo, na parte mais escura do recinto. Entramos a passos lentos. Minha amiga tremia de frio e medo. O primeiro corpo à direita, pelo volume dos seios, era de mulher. Ao lado dela alguém do sexo masculino. Respirando fundo, minha querida segurou uma ponta do lençol. Levou uma eternidade para erguê-lo, com o rosto contraído, e quando finalmente o descobriu, fechou os olhos. Fez uma careta quase de dor, e abriu um olho. Era um homem jovem, de rosto cinzento, e estava de fato bastante morto, mas ainda com os cantos da boca puxados em rígida careta, como se tivesse morrido por um gesto de escárnio contra algo ou alguém. Marília emitiu um gemido abafado e deixou cair o lençol, caminhando para trás. Bateu com as costas no carrinho onde estava a mulher de seios grandes, e pulou para a frente com um grito. Temendo menos os defuntos do que ser descoberta, correu para o fundo da sala, e espremeu-se entre os dois últimos cadáveres, meio abaixada. Passaram-se alguns momentos, e ouvimos ressonar o homem imperturbável que dormia lá fora. Refizemo-nos do susto. Marília adiantou-se dois passos, a cabeça erguida na direção da claridade. Nenhum som. Foi então que o corpo do lado dela virou-se repentinamente. Sua mão suspendeu-se no ar e pousou na nádega da invasora, segurando-a em cheio e com vigor. Voltamo-nos, e vimos dois olhos vermelhos e injetados, e ouvimos uma voz roufenha que inquiriu: - Que é que você quer, minha filha?
Talvez vocês pensem que reagi bem a isso, pelo fato de ser eu mesmo um fantasma. Mas considerem que eu era então um recém-chegado aos assuntos do Além, com os quais aliás nunca tive contato, e minha primeira reação foi de arrepiar carreira tanto quanto Marília, que de fato o fez, berrando com toda a força dos pulmões, mas antes de acompanhá-la tive alguma presença de espírito (sem trocadilhos) e olhei bem para aquela súbita aparição, e foi então que tive a iluminação de que não era ninguém senão o velhinho que passara por nós lá fora, usando a maca para fazer melhor o que seu colega fazia bem no primeiro cômodo. Erguera a cabeça balouçante, zonzo de álcool e sono, e só depois de alguns instantes atinou a situação e saltou para perseguir a invasora, cuja fuga era assinalada por um rastro de gritos agudos. Passou pelo outro vigilante como uma bala e quase matou o infeliz, não só do espanto, mas porque esbarrou nas suas pernas e o fez cair de costas sobre o chão gelado, sem antes deixar de bater o cocuruto na parede onde se apoiara. O velhinho seguia-a, e eu a ele. Passamos a tempo de ver o outro que se levantava com as mãos na nuca, e juntou-se a nós que íamos ao encalço da fugitiva.
Lá fora estavam os meus aventureiros, que ao ver a companheira saltar para a noite com urros de pavor, seguida por dois homens de expressão aparvalhada, afastaram-se atabalhoadamente na direção contrária, tentando dar a impressão casual de quem aspira distraidamente o ar noturno, enquanto passeia diante dos necrotérios. Por puro acaso Marília correu na direção do estacionamento. Os dois funcionários a perseguí-la. Carlos tomou coragem para olhar por cima do ombro, e viu os três se afastando.
- Ei, pessoal, olha só. Eles estão indo pro outro lado. Espera!
Voltaram-se.
- Que diabo aconteceu lá dentro?
- Não sei, porra, ela foi na direção do hospital, não vai acontecer nada de mais por lá. Vamos aproveitar e entrar pra procurar o Chico.
Hesitaram um tanto, mas foram. A urgência os fez serem frios. Encontraram-me onde eu mesmo não chegara a me perceber, ao lado de onde dormitava o velho. Alfredo e Antônio levantaram-me, passando meus braços em volta de seus ombros, e caminhando rápido chegaram mais ou menos desapercebidos até o carro.
O necrotério era uma construção térrea, um anexo do edifício principal. Os corpos eram depositados numa sala ampla, que ocupava todo um lado de um corredor, antecedido por outra dependência, que fazia as vezes de entrada e recepção ao público. No extremo oposto do tal corredor havia uma porta, que dava para um pequeno pátio, e era por lá que os rabecões chegavam e partiam com suas cargas fúnebres, o outro público que já não espera nada. Por lá também os defuntos eram trazidos, às ocultas dos vivos que transitavam na parte frontal do pequeno complexo. Já início da madrugada, estacionamos no pátio interno do hospital. Rumamos para o nosso objetivo como um furtivo grupo de agentes de uma organização secreta de roubo de cadáveres. Na recepção mal iluminada, um vigilante cochilava numa cadeira, recostado a um estreito balcão. Aproximávamo-nos quando o vimos a uns vinte passos de nós. Estacamos e ficamos em transe, observando o seu sono tranqüilo. Houve um momento de natural desorientação. Afinal, ninguém ali jamais havia feito semelhante coisa. Gilberto tentou mais uma vez desencorajar os outros, que desta vez nem deram-se ao trabalho de responder. Apenas ignoraram-no. Ele pareceu render-se em definitivo. Após alguns momentos de silêncio indeciso, foi Marília quem falou:
- Então, que fazemos agora?
- Diabo, juro que não sei. Estou pensando. – Respondeu Alfredo.
Nisto aproximou-se um homem trôpego, andando curvado e cambaleante. Passou por eles e saudou-os despreocupadamente. Era um senhor de idade avançada, vestindo uma farda surrada. Caminhou para o necrotério, e entrando no corredor que levava à sala dos corpos, de passagem despertou com um tapa na testa o dorminhoco. O homem pulou da cadeira como se tivesse recebido o tabefe de um de seus hóspedes partidos para o além, e xingou bem o velhinho, de quem só ouvíamos as risadas. O atento vigia empurrou com o pé a porta, que ficou entreaberta, e ajeitou-se para retomar sua atividade, jogando o corpo para trás e apoiando a cadeira nas pernas traseiras, em precário equilíbrio. Ficou tudo quieto novamente. A presença de mais uma pessoa deixou-nos mais atônitos. Marília rompeu a indecisão:
- Já sei, vou entrar lá e procurar o corpo de Francisco. Se me encontram digo que sou a viúva.
- É, isso deve dar certo. – Animou-se Alfredo.
- E você vai ter coragem de ir até lá sozinha? – Gilberto pareceu mais assustado que zombeteiro.
- Por que eu teria medo de Chico agora? E os outros... Finjo que estão dormindo.
E lá se foi ela, com o encorajamento admirado dos homens.
Fiquei olhando-a, meio divertido, caminhar a passos furtivos e rápidos para o prédio. Depois me ocorreu que eu não era visível como os demais e poderia muito bem acompanhá-la. Fui.
Quando entrei, o vigilante roncava à minha esquerda, suas pernas penduradas junto à entrada do corredor. Não havia sinal do seu companheiro, o que era preocupante. Talvez tivesse saído pelo outro lado. Avancei. Marília estava adiante de mim, encostada à parede, e espiava o salão envolto na penumbra, iluminado apenas pela luz que vinha do corredor. Havia uma meia dúzia de macas dispostas em duas filas, ocupadas por corpos cobertos até a cabeça com lençóis. Quatro estavam à nossa direita, e dois à esquerda. Só dois deles estavam com o rosto à mostra, os dois do fundo, na parte mais escura do recinto. Entramos a passos lentos. Minha amiga tremia de frio e medo. O primeiro corpo à direita, pelo volume dos seios, era de mulher. Ao lado dela alguém do sexo masculino. Respirando fundo, minha querida segurou uma ponta do lençol. Levou uma eternidade para erguê-lo, com o rosto contraído, e quando finalmente o descobriu, fechou os olhos. Fez uma careta quase de dor, e abriu um olho. Era um homem jovem, de rosto cinzento, e estava de fato bastante morto, mas ainda com os cantos da boca puxados em rígida careta, como se tivesse morrido por um gesto de escárnio contra algo ou alguém. Marília emitiu um gemido abafado e deixou cair o lençol, caminhando para trás. Bateu com as costas no carrinho onde estava a mulher de seios grandes, e pulou para a frente com um grito. Temendo menos os defuntos do que ser descoberta, correu para o fundo da sala, e espremeu-se entre os dois últimos cadáveres, meio abaixada. Passaram-se alguns momentos, e ouvimos ressonar o homem imperturbável que dormia lá fora. Refizemo-nos do susto. Marília adiantou-se dois passos, a cabeça erguida na direção da claridade. Nenhum som. Foi então que o corpo do lado dela virou-se repentinamente. Sua mão suspendeu-se no ar e pousou na nádega da invasora, segurando-a em cheio e com vigor. Voltamo-nos, e vimos dois olhos vermelhos e injetados, e ouvimos uma voz roufenha que inquiriu: - Que é que você quer, minha filha?
Talvez vocês pensem que reagi bem a isso, pelo fato de ser eu mesmo um fantasma. Mas considerem que eu era então um recém-chegado aos assuntos do Além, com os quais aliás nunca tive contato, e minha primeira reação foi de arrepiar carreira tanto quanto Marília, que de fato o fez, berrando com toda a força dos pulmões, mas antes de acompanhá-la tive alguma presença de espírito (sem trocadilhos) e olhei bem para aquela súbita aparição, e foi então que tive a iluminação de que não era ninguém senão o velhinho que passara por nós lá fora, usando a maca para fazer melhor o que seu colega fazia bem no primeiro cômodo. Erguera a cabeça balouçante, zonzo de álcool e sono, e só depois de alguns instantes atinou a situação e saltou para perseguir a invasora, cuja fuga era assinalada por um rastro de gritos agudos. Passou pelo outro vigilante como uma bala e quase matou o infeliz, não só do espanto, mas porque esbarrou nas suas pernas e o fez cair de costas sobre o chão gelado, sem antes deixar de bater o cocuruto na parede onde se apoiara. O velhinho seguia-a, e eu a ele. Passamos a tempo de ver o outro que se levantava com as mãos na nuca, e juntou-se a nós que íamos ao encalço da fugitiva.
Lá fora estavam os meus aventureiros, que ao ver a companheira saltar para a noite com urros de pavor, seguida por dois homens de expressão aparvalhada, afastaram-se atabalhoadamente na direção contrária, tentando dar a impressão casual de quem aspira distraidamente o ar noturno, enquanto passeia diante dos necrotérios. Por puro acaso Marília correu na direção do estacionamento. Os dois funcionários a perseguí-la. Carlos tomou coragem para olhar por cima do ombro, e viu os três se afastando.
- Ei, pessoal, olha só. Eles estão indo pro outro lado. Espera!
Voltaram-se.
- Que diabo aconteceu lá dentro?
- Não sei, porra, ela foi na direção do hospital, não vai acontecer nada de mais por lá. Vamos aproveitar e entrar pra procurar o Chico.
Hesitaram um tanto, mas foram. A urgência os fez serem frios. Encontraram-me onde eu mesmo não chegara a me perceber, ao lado de onde dormitava o velho. Alfredo e Antônio levantaram-me, passando meus braços em volta de seus ombros, e caminhando rápido chegaram mais ou menos desapercebidos até o carro.