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Visões do Abismo

Thursday, April 27, 2006

O Desejo de Um Morto - capítulo III

Ladrões de Corpos


O necrotério era uma construção térrea, um anexo do edifício principal. Os corpos eram depositados numa sala ampla, que ocupava todo um lado de um corredor, antecedido por outra dependência, que fazia as vezes de entrada e recepção ao público. No extremo oposto do tal corredor havia uma porta, que dava para um pequeno pátio, e era por lá que os rabecões chegavam e partiam com suas cargas fúnebres, o outro público que já não espera nada. Por lá também os defuntos eram trazidos, às ocultas dos vivos que transitavam na parte frontal do pequeno complexo. Já início da madrugada, estacionamos no pátio interno do hospital. Rumamos para o nosso objetivo como um furtivo grupo de agentes de uma organização secreta de roubo de cadáveres. Na recepção mal iluminada, um vigilante cochilava numa cadeira, recostado a um estreito balcão. Aproximávamo-nos quando o vimos a uns vinte passos de nós. Estacamos e ficamos em transe, observando o seu sono tranqüilo. Houve um momento de natural desorientação. Afinal, ninguém ali jamais havia feito semelhante coisa. Gilberto tentou mais uma vez desencorajar os outros, que desta vez nem deram-se ao trabalho de responder. Apenas ignoraram-no. Ele pareceu render-se em definitivo. Após alguns momentos de silêncio indeciso, foi Marília quem falou:
- Então, que fazemos agora?
- Diabo, juro que não sei. Estou pensando. – Respondeu Alfredo.
Nisto aproximou-se um homem trôpego, andando curvado e cambaleante. Passou por eles e saudou-os despreocupadamente. Era um senhor de idade avançada, vestindo uma farda surrada. Caminhou para o necrotério, e entrando no corredor que levava à sala dos corpos, de passagem despertou com um tapa na testa o dorminhoco. O homem pulou da cadeira como se tivesse recebido o tabefe de um de seus hóspedes partidos para o além, e xingou bem o velhinho, de quem só ouvíamos as risadas. O atento vigia empurrou com o pé a porta, que ficou entreaberta, e ajeitou-se para retomar sua atividade, jogando o corpo para trás e apoiando a cadeira nas pernas traseiras, em precário equilíbrio. Ficou tudo quieto novamente. A presença de mais uma pessoa deixou-nos mais atônitos. Marília rompeu a indecisão:
- Já sei, vou entrar lá e procurar o corpo de Francisco. Se me encontram digo que sou a viúva.
- É, isso deve dar certo. – Animou-se Alfredo.
- E você vai ter coragem de ir até lá sozinha? – Gilberto pareceu mais assustado que zombeteiro.
- Por que eu teria medo de Chico agora? E os outros... Finjo que estão dormindo.
E lá se foi ela, com o encorajamento admirado dos homens.
Fiquei olhando-a, meio divertido, caminhar a passos furtivos e rápidos para o prédio. Depois me ocorreu que eu não era visível como os demais e poderia muito bem acompanhá-la. Fui.
Quando entrei, o vigilante roncava à minha esquerda, suas pernas penduradas junto à entrada do corredor. Não havia sinal do seu companheiro, o que era preocupante. Talvez tivesse saído pelo outro lado. Avancei. Marília estava adiante de mim, encostada à parede, e espiava o salão envolto na penumbra, iluminado apenas pela luz que vinha do corredor. Havia uma meia dúzia de macas dispostas em duas filas, ocupadas por corpos cobertos até a cabeça com lençóis. Quatro estavam à nossa direita, e dois à esquerda. Só dois deles estavam com o rosto à mostra, os dois do fundo, na parte mais escura do recinto. Entramos a passos lentos. Minha amiga tremia de frio e medo. O primeiro corpo à direita, pelo volume dos seios, era de mulher. Ao lado dela alguém do sexo masculino. Respirando fundo, minha querida segurou uma ponta do lençol. Levou uma eternidade para erguê-lo, com o rosto contraído, e quando finalmente o descobriu, fechou os olhos. Fez uma careta quase de dor, e abriu um olho. Era um homem jovem, de rosto cinzento, e estava de fato bastante morto, mas ainda com os cantos da boca puxados em rígida careta, como se tivesse morrido por um gesto de escárnio contra algo ou alguém. Marília emitiu um gemido abafado e deixou cair o lençol, caminhando para trás. Bateu com as costas no carrinho onde estava a mulher de seios grandes, e pulou para a frente com um grito. Temendo menos os defuntos do que ser descoberta, correu para o fundo da sala, e espremeu-se entre os dois últimos cadáveres, meio abaixada. Passaram-se alguns momentos, e ouvimos ressonar o homem imperturbável que dormia lá fora. Refizemo-nos do susto. Marília adiantou-se dois passos, a cabeça erguida na direção da claridade. Nenhum som. Foi então que o corpo do lado dela virou-se repentinamente. Sua mão suspendeu-se no ar e pousou na nádega da invasora, segurando-a em cheio e com vigor. Voltamo-nos, e vimos dois olhos vermelhos e injetados, e ouvimos uma voz roufenha que inquiriu: - Que é que você quer, minha filha?
Talvez vocês pensem que reagi bem a isso, pelo fato de ser eu mesmo um fantasma. Mas considerem que eu era então um recém-chegado aos assuntos do Além, com os quais aliás nunca tive contato, e minha primeira reação foi de arrepiar carreira tanto quanto Marília, que de fato o fez, berrando com toda a força dos pulmões, mas antes de acompanhá-la tive alguma presença de espírito (sem trocadilhos) e olhei bem para aquela súbita aparição, e foi então que tive a iluminação de que não era ninguém senão o velhinho que passara por nós lá fora, usando a maca para fazer melhor o que seu colega fazia bem no primeiro cômodo. Erguera a cabeça balouçante, zonzo de álcool e sono, e só depois de alguns instantes atinou a situação e saltou para perseguir a invasora, cuja fuga era assinalada por um rastro de gritos agudos. Passou pelo outro vigilante como uma bala e quase matou o infeliz, não só do espanto, mas porque esbarrou nas suas pernas e o fez cair de costas sobre o chão gelado, sem antes deixar de bater o cocuruto na parede onde se apoiara. O velhinho seguia-a, e eu a ele. Passamos a tempo de ver o outro que se levantava com as mãos na nuca, e juntou-se a nós que íamos ao encalço da fugitiva.
Lá fora estavam os meus aventureiros, que ao ver a companheira saltar para a noite com urros de pavor, seguida por dois homens de expressão aparvalhada, afastaram-se atabalhoadamente na direção contrária, tentando dar a impressão casual de quem aspira distraidamente o ar noturno, enquanto passeia diante dos necrotérios. Por puro acaso Marília correu na direção do estacionamento. Os dois funcionários a perseguí-la. Carlos tomou coragem para olhar por cima do ombro, e viu os três se afastando.
- Ei, pessoal, olha só. Eles estão indo pro outro lado. Espera!
Voltaram-se.
- Que diabo aconteceu lá dentro?
- Não sei, porra, ela foi na direção do hospital, não vai acontecer nada de mais por lá. Vamos aproveitar e entrar pra procurar o Chico.
Hesitaram um tanto, mas foram. A urgência os fez serem frios. Encontraram-me onde eu mesmo não chegara a me perceber, ao lado de onde dormitava o velho. Alfredo e Antônio levantaram-me, passando meus braços em volta de seus ombros, e caminhando rápido chegaram mais ou menos desapercebidos até o carro.

Wednesday, April 19, 2006

O Desejo de Um Morto - capítulo II

A Hora Mais Triste


Em algum momento da morte chega a hora mais triste do mundo. Não é uma hora de reflexão serena. Antes é a antecipação da perda. Eu fui um desses tolos que têm a necessidade angustiada de encontrar sentido na existência. Pior, que entendem que não há sentido algum e tentam construí-lo com a razão, e se possível, com as mãos. Das fronteiras difusas do passamento olhei minha vida, e ela passou inteira diante dos meus olhos, e em nenhum lugar residia o sentido. Sinto por esse velho clichê da vida diante dos olhos, mas o que posso fazer? Os clichês mais gastos, imagino, são quase todos verdadeiros. Nem sequer havia eu. Em cada época era um alguém diferente que só conseguia comunicar ao seu sucessor a parte ruim: o medo, a dúvida, o sofrimento, a raiva, os recalques. Agora eu era todos esses sujeitos e nenhum deles. Havia ainda de olhar cada um nos olhos, entendê-lo, talvez chorar e rir com ele e dar-lhe um esporro federal, reconciliar-me com todos, e juntos irmos todos beber e trocar impressões sobre mulheres que não nos amaram e técnicas para curar ressacas. Então eu estaria em paz e pronto para aceitar que minha vida tinha acabado. Pouco me importaria a eternidade vestido de camisolão branco. Para todos os fins práticos, eu não existiria mais.
Os filhos de putas dos meus amigos entraram no meu apartamento feito sonâmbulos. Olharam as paredes como se a primeira vez fosse, como se estivessem cobertas de teias.
Antônio foi-se para o quarto em busca de alguma roupa que ficasse bem como traje de morto. Os outros espalharam-se pelos cantos, quietos demais, os infelizes. Antônio voltou com meu paletó filho único. Murmurou: “Acho que esta está boa.”
Mas os outros nem olharam a mortalha. Ficaram assim tanto tempo que eu já quase me sentia apiedado dos canalhas. Quando já estavam daquele jeito há tanto que a lua ia mudando de posição na janela, Carlos disse meio inseguro, em tom de sugestão: “Aquele grande veado não tinha uma garrafa de uísque decente que ele guardava pra quando comesse sei lá quem?”. “Que é isso, porra? Era pra quando a filha casasse...”. “Não, não, era pra formatura de um dos filhos, não lembro qual!”. Eu não acreditava nos meus ouvidos etéreos. “Tudo bem, seja lá por que motivo fosse, o certo é que o filho da puta morreu e os filhos dele nem devem gostar de uísque tanto assim. Proponho que a gente abra essa porcaria agora, em homenagem ao Francisco, o velho Chico, que nunca mais vai dar no mar.” Eu sempre detestei essa piadinha de dar no mar. Alfredo protestou: “Não, porra, não é certo. O Chico guardava esse uísque aí há uns cinco anos. Imaginem o sacrifício que era pra ele. Isso devia ter um significado. Eu sou contra.” Mas Carlos insistiu: “Vamos procurar a garrafa. Não tem nada de mais. Eu acho que ele ia gostar que a gente bebesse esse troço em sua homenagem.” Antônio e Gilberto concordaram sem grandes escrúpulos. Em poucos instantes encontraram a garrafa e a colocaram sobre a mesinha. Alfredo lavou uns copos e os colocou em volta. Cinco ao todo. Tentei tocar o que me reservaram, mas não tive sucesso. Sentaram à mesa e quedaram-se contemplando o invólucro sagrado. Alfredo quebrou o silêncio. “Porra, nosso amigo morreu, bicho. É verdade isso?” Antônio que respondeu: “É, velho. Todo mundo que fala ‘bicho’ está morrendo. Olha a cara do Roberto Carlos na televisão. Ficamos velhos, meu irmão.” Alfredo prosseguiu: “É isso. A vida passou. Fizemos porra nenhuma e pouco importa que tivéssemos feito. Estamos velhos. Agora é ladeira abaixo.” “É isso mesmo. Vamos abrir logo esta merda que já não temos tempo pra perder!” Antônio violou o lacre da garrafa e encheu os copos como se cresse estar numa cerimônia do chá. Quando terminou não beberam. Ninguém tomava a iniciativa. Gilberto virou o rótulo negro para si, ficou olhando-o, e suspirou: “Pensando bem, dos uísques mais decentes este até que nem é de muita cerimônia. Nós que somos uns bebuns fodidos.” Os outros concordaram. Eu também. Giba ergueu um brinde: “Eu conheci aquele filho da puta há muitos anos. Nem quero lembrar quando, porque faz meu coração ratear também. Era um amigo de primeira. Era um canalha, o infeliz. Foi uma puta duma sacanagem aquele filho da mãe morrer e nos deixar assim, cara, e digo mais, a Oneida diz que não suporta vocês, mas eu tenho certeza que quando eu disser a ela que passei a noite na rua porque o Chico morreu, ela vai dizer que é mentira, vai dizer que não tem tanta sorte assim de vocês morrerem pra eu perder os companheiros de cachaça, mas quando acreditar em mim e ver que estou falando sério, ela vai chorar com certeza. Aliás a sorte de vocês é que eu ainda não estou bêbado, porque senão eu ia chorar como um neném. Vamos beber ao nosso amigo que nos deixou. Ninguém nunca teve um amigo melhor. Um cara que sempre me levou pra casa sem reclamar e nunca vomitou dentro do meu carro. Ao Chico!”. “Ao Chico!”, gritaram os outros. Eu juro que fiquei comovido com um discurso tão pungente. A Oneida vai abrir um corte de uns cinco pontos na cabeça desse frouxo, mas talvez até se arrependa depois.
Melhor faria ele em voltar pra casa, mas devagar foram todos puxando uma conversa atravessada de recordações de farras recentes e antigas, de papos intermináveis dentro da madrugada, e o líquido foi sendo consumido devagar e sem dramas de consciência. Passou-se hora e meia dessa maneira, e era quase meia-noite, quando o celular de Antônio tocou.
No pequeno painel do telefone piscou o nome de Marília. Antônio mordeu os lábios. Ele havia ligado para Marília do hospital, pedira-lhe que aguardasse notícias, mas a essa altura sentiu-se sem forças de falar-lhe da minha morte. Entre eu e ela havia um certo tipo de namoro nunca assumido nem interrompido. Uma amizade extensiva à cama, que vinha de muito. Antônio olhou com ar desamparado para os outros, mostrou o nome brilhando intermitentemente, respirou fundo e atendeu. Começou balbuciando, levantou-se, afastou-se na direção do corredor. Ficamos todos acompanhando a conversa, apreensivos, penalizados. Quando desligou tinha os olhos úmidos. Voltou para a mesa. – Ela chorou muito. – Disse, com um misto de pena pela amiga e por si mesmo. Olhava fixamente para o chão. – Está vindo para cá. – Concluiu. Fincou os cotovelos na mesa como se os braços lhe pesassem. – Não será perigoso, com os nervos abalados, dirigir... – preocupou-se Giba. Mas Antônio o tranqüilizou. – Não, acho que não... Ela não mora longe, e Marília é uma mulher forte. – Olhou o relógio e voltou a apoiar o rosto na mão espalmada. Minha querida Marília era mais que uma mulher forte, era realmente notável. Inteligente, sensível, linda. Tinha uma qualidade rara nas mulheres para mim: bom humor. E era uma guerreira. Surpreendi-me por pensar nela já com saudades, como uma lembrança. Fiquei ainda mais confuso ao me ocorrer que a lembrança era eu. Alfredo deu um gole no seu uísque e disse, olhando os outros com uma expressão de súbita exaltação, como quem lembra de um fato importante:
- Engraçado. Lembram que o Chico sempre falava sobre morte? Ele tinha mania de falar sobre morte, mas não era de um jeito mórbido, era mais uma inquietação, um jeito dele provocar a gente, ele mesmo...
- É. – a voz de Antônio soou lenta, mais como um suspiro. Ajeitou-se melhor na cadeira. Sorriu tristemente e continuou. – Chico sempre dizia que não queria ser enterrado num cemitério, numa caixa de cimento, como ele dizia. E nisso acho que o canalha falava sério. Pedia para ser sepultado ao ar livre, à beira-mar talvez, num lugar em que pudesse nascer alguma coisa sobre o corpo dele. Se possível um coqueiro. Recitava uns versos de Fernando Pessoa que não consigo recordar...
- A imortalidade possível, dizia ele. A alma é transitória, mas os átomos que nos constituem não. Eles existem praticamente desde a constituição do universo, e existirão provavelmente até o seu fim. Formarão outros arranjos, darão forma a outros corpos, e continuarão. A alma morre, a matéria é eterna. Uma bela heresia. Isso não me sai da cabeça.
- Sim, - interveio Antônio – e sabem de algo? Nosso amigo mereceria que a gente cumprisse esse seu desejo. Não consigo imaginar velório, cortejo e cemitério para o Chico.
- Isso mesmo. – Tornou Alfredo, com uma firmeza que fez todos nós olharmos para ele quase como se tivesse baratas andando pelas roupas. Seu rosto refletia a seriedade de quem tomou uma convicta resolução. Alfredo, que era tão ponderado habitualmente.

Confesso que eu estava agradavelmente surpreso. Meus amigos haviam reconstituído tão bem aqueles meus devaneios dos quais zombaram tantas vezes e que eu repetira um outro tanto, que naquele momento fiquei encantado e por que não dizer, agradecido. A conversa iluminou-se de um modo totalmente inesperado. Entreolharam-se, mas foi Alfredo que prosseguiu.
- Que se dane. Há anos ouço vocês dizerem barbaridades, e eu estou sempre fazendo ponderações, sendo comedido, contemporizando... Se nós fôssemos os Beatles eu seria o Ringo. Pois a vida passa rápido e agora eu vou vestir a fantasia de incendiário. Chega de ser bombeiro! Chico queria ser enterrado numa praia. Nós vamos fazer isso por ele!
- Eu faria isso pelo meu amigo. Entramos no hospital antes que chegue a funerária e roubamos o Chico. – O rosto de Antônio era quase solene. Gilberto acompanhava a conversa como mais um delírio alcoólico dos companheiros, mas aquele tom o surpreendeu.
- Quem vê vocês falando assim pode até pensar que é sério. – E soltou uma risadinha nervosa, pegando a garrafa para encher os copos e olhando de soslaio os dois candidatos a ladrões de defuntos. Alfredo segurou o braço dele com mão firme, o gesto de Giba ficou parado no ar. Seus olhos encontraram os do amigo, e Alfredo esperou esse contato durar alguns segundos para dizer da forma mais grave:
- Eu falo sério.
- Eu também. – Secundou Antônio.
Gilberto sentiu-se subitamente deslocado. Seu corpo tremeu ligeiramente. Encarou os dois revoltosos, que pareciam ter entrado num mútuo entendimento que dispensava até as palavras, abriu os braços e franziu a boca como que para falar mas interrompeu-se, duas, três vezes, e por fim zangou-se. Bateu com força as palmas das mãos na mesa e deu um grande muxoxo. Recorreu ao uísque. Deu um grande gole e tornou a olhar Alfredo e Antônio. Os dois tinham assumido um ar de expectativa que o agradou. Encorajado, bebeu mais uma vez, e parecendo satisfeito, virou-se para Carlos, que acompanhava tudo distraidamente.
- Esses dois ficaram sem assunto, Carlos. Que papo mais sem graça esse de roubar o corpo de Chico. Veja se você me ajuda a consertar a conversa.
- Se é pra ir, - disse Carlos, de olhos vesgos para um fiapo de linha que acabara de encontrar na manga da camisa. – vamos logo.
- Porra, mas que merda é essa?
- Melhor mais cedo do que mais tarde. Mas a gente leva a garrafa. – E arrancou o fiapo com um puxão.
Gilberto chegou ao paroxismo.
- Fodam-se vocês três! Pois muito bem, vamos. Acho que é isso que vocês estão querendo. Vamos! Mas depois eu vou lembrar com muito prazer de chamar todos de agitadores de meia pataca, covardes e falastrões!
Arrastou a garrafa de sobre a mesa com um golpe rápido, e rumou rigidamente para a porta. Os outros levantaram-se, divertidos, e seguiram-no depois de esvaziarem seus copos. Eu os acompanhei. Meu único e inútil paletó ficou esquecido sobre uma cadeira.
Chegando à rua, encontramos Marília estacionando à frente do prédio. Ficamos todos compungidos. Ela desceu do carro com uma expressão dolorida e aproximou-se como quem procura abrigo. Ficamos em roda à sua volta. Eu, naturalmente, um mero espaço vazio. As lágrimas correram nas faces deles e mesmo das minhas, ali, imóveis. Antônio estendeu-lhe a mão, e Marília puxou-o para si. Abraçaram-se. Ela desatou um choro soluçado e profundo. Alfredo avançou quietamente e estreitou os dois. Carlos e Gilberto lhes seguiram o exemplo, e ficaram os cinco assim, num abraço mudo e triste que me deixou com uma saudade imensa de estar vivo.
Marília secava com um lenço o rosto moreno, e eu diria que não foi de espanto nem reprovação mas apenas bem-humorada aceitação a expressão com que viu a garrafa na mão de Gilberto. Sem se dirigir a ninguém em particular perguntou:
- Aonde vocês estão indo agora?
Gilberto mudou de tristonho para zombeteiro para responder.
- Agora? Vamos ao hospital roubar o corpo de Chico para enterrá-lo em alguma praia deserta.
A reação de Marília foi a mais natural possível.
- O quê?!
- Isso que você ouviu. Vamos roubar o Chico. – Disse Carlos, tomando a garrafa da mão de Giba para dar um trago direto no gargalo.
- Que diabo de conversa é essa? – Marília e Gilberto exclamaram em uníssono.
Marília ficou mais confusa ainda com a irritação de Gilberto. Diverti-me muito com a maneira como ela deu um passo para trás e olhou os rapazes como eles realmente se encontravam: um grupo de bêbados, passando de mão em mão uma garrafa de uísque já quase vazia, incapazes de ficar de pé sem balançar pateticamente, e com aqueles olhos mortiços de embriaguez, porém com uma certa determinação, a aparência de pessoas que têm uma tarefa a executar... pelo menos três delas. E um quarto elemento que se opunha e no entanto demonstrava-se pronto e disposto a deixar-se levar.
Ela insistiu:
- O que está acontecendo?
Alfredo respondeu com uma simpática desenvoltura.
- Queremos prestar uma homenagem ao nosso amigo. Você sabe que não importa como o julguem, Chico viveu do jeito que quis viver. Agora ele morreu, e vamos enterrá-lo do jeito que ele escolheu. Você é contra isso?
- Mas vocês... estão brincando, não é? Eu sei que vocês são meio loucos, mas pra fazer isso teriam que ser completamente sem juízo. E a família dele? A ex-mulher, os filhos? Eles vão ficar desesperados!
- Você acha que esses cretinos pensaram nisso? – Exasperou-se Gilberto.
Aparentemente os cretinos não haviam pensado. Procuraram apoio um no outro, mas Antônio não deu mostras de ter perdido a serenidade.
- Eles vão fazer o quê? Comprar uma lápide? Enterrar o Chico numa gaveta de cimento e visitá-lo todo dois de novembro? Acender velas pra ele? Ridículo! Você consegue reconhecê-lo nesses rituais idiotas? Marisa largou o Francisco há anos, e mal o deixava visitar os filhos quando eram crianças. Ela não era dona dele vivo e não é dona dele morto. Ele viveu como quis e agora vai ser sepultado como quis. Isto se chama coerência.
- Isso mesmo. – Animou-se Alfredo. – E também se chama amizade.
Marília estava estarrecida.
- Isto se chama loucura! Vocês não podem estar falando sério!
- Venha conosco então. Talvez você possa ajudar.
De repente, por uma misteriosa intuição, ela compreendeu tudo instantaneamente. Como num transe, aquela idéia galvanizara o grupo. Eles estavam além de qualquer ponderação ou dissensão, e toda resistência que se lhes fosse oferecida apenas os prenderia ainda mais na malha hipnótica dos seus argumentos. Mesmo Gilberto não parecia cogitar abandoná-los. E ela, Marília, poderia juntar-se a eles ou não. A decisão dependia de quê? Um motivo? Pensou em mim, pensou nas nossas vidas juntos, em tudo que fizemos e deixamos por ser feito, e tudo era um mosaico de momentos nunca vividos plenamente, por pessoas que não se davam por inteiro porque tinham se conhecido tarde demais, eram velhos demais e tinham vivido coisas demais para se entregar integralmente ao que quer que fosse, homens e mulheres cheios de sonhos amarelecidos, um tipo de gente que transformaria o mundo se tivesse apenas o ânimo de dobrar a esquina. Ela não quis admitir, não quis dizer a si própria que estava em face do monstro, prestes a encarar que era uma mulher já além da meia-idade, adiantada numa maturidade melancólica compartilhada com outros igualmente perdidos, e para Marília o melhor de todos eles acabava de findar e aquele fato a atingia numa extensão e com uma complexidade ainda obscura, esse outro fato mal-resolvido e que provavelmente terminaria mal colocado, brincava com ela, expondo-lhe a possibilidade de transcender seu próprio sentido, mostrando-lhe sua vida como uma seqüência inexorável de acontecimentos inertes e absurdos. Mas um gesto simples em seu sentido podia representar uma ruptura para ela. Sim. Aquilo estava bem. Aquilo era coerente consigo, comigo. Era tarde para a minha covardia, mas não para a covardia dela.

Tuesday, April 18, 2006

O Desejo de Um Morto - capítulo I

“Quando a erva crescer em cima da minha sepultura,
Seja este o sinal para me esquecerem de todo.
A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela.
E se tiverem a necessidade doentia de “interpretar” a erva verde
sobre a minha sepultura,
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural.”
(Fernando Pessoa)



A Morte Chega


O que posso dizer da morte? Acho que não há morte desacompanhada dessa sensação esmagadora de estupor, de ansiedade, de medo e expectativa. Talvez uma morte muito lenta permita um diálogo silencioso que minimize esse estranhamento. Para mim, que tive um infarto mais ou menos inesperado, morrer foi um tremendo susto. E eis aí: morrer é um tremendo susto.
Eu sempre disse que se depois de morrer eu me visse em outro lugar, qualquer lugar, ou até no mesmo lugar, enfim, se ainda restasse algo de mim que pudesse dizer fosse o que fosse, esse algo diria: “Caramba, quer dizer que eu estava enganado!” Sobre o quê? Perguntareis, leitores. Ora, sobre vida após a morte, porque morrer para mim era mesmo o fim, na acepção materialista do termo. Finito. Caput. Morreu, danou-se. Se vou mesmo me danar, porém, ainda não sei. Não acredito nessas coisas.
Não estou aqui a ensinar conceitos. Não sei da morte, principalmente da alheia. Para mim as coisas ficaram um bocado confusas. Lembro vagamente de estar rindo às gargalhadas com o Alfredo imitando o Antônio imitando o Maluf. Meus amigos sabem como eu costumo (é, digo no presente, porque na morte eu ainda encontro muita coisa engraçada) rir fácil e muito. Por isso eles demoraram a perceber que eu não estava engasgando de riso e sim de outra coisa. Foi preciso que eu ficasse de olhos revirados e caísse da cadeira pra que aqueles imprestáveis me prestassem um pouco de atenção, e mesmo assim ainda tive que ficar inconsciente, azul e frio pra que eles parassem de me cutucar e me carregassem até a emergência mais próxima. A essa altura eu não só estava quase morto como olhando a cena mais bizarra deste mundo, sem entender merda nenhuma e morrendo também de medo.
Eu estou olhando pra mim mesmo, deitado no chão do bar do Modesto. Eu continuo me vendo, carregado por quatro bêbados que me pegam por cada um dos braços e pernas e me vão levando, a cabeça pendurada, a boca deitando espuma. Não uma ação coordenada e segura, claro, mas uma trapalhada, cada um puxando para um lado, todos tombando, tropeçando nas mesas, cadeiras e pessoas, gritando instruções malucas que ninguém obedece. Eu estou me vendo colocado no banco traseiro do carro do Alfredo, a cabeça no colo do Antônio depois de ter levado umas três pancadas na porta e no banco. Nada que piorasse o meu estado. Por fim, eu estou esperando junto com meus companheiros que alguém dê atenção ao nosso desespero e me socorra. Esses foram uns momentos bem aflitos. A mim tudo parece um sonho, vejo as coisas em flashes, as vozes chegam cheias de ressonância, as imagens são difusas. Mas o pior foi ser depositado numa maca que ficou estacionada num corredor razoavelmente movimentado, indiferente a mim e minha condição. Fiquei alguns momentos me contemplando nessa bolha de calma e abandono em que me deixaram, mas após um pouco isso me incomodou por demais, e decidi voltar para junto dos meus amigos.

Os detalhes são muito aborrecidos. Telefonemas, explicações, espera. Senti pena dos meus filhos chegando angustiados, a moça com lágrimas nos olhos, abraçada à mãe que também chorava. Ingrata. Quando eu estava vivo não me soube aproveitar. Agora já fui. Opa! Isto não me consola. O fato é que por uns poucos anos de umas farras que não faziam mal a ninguém ela me deixou e ainda se deu o direito de casar de novo com o mosca morta do Miguel, uma besta com esse nome de anjo sonso. É, sobrou pro anjo, sim; pra mim fica estabelecido que ele é sonso e acabou-se. Ainda por cima o idiota usava bigode. Não o anjo, o outro. Sempre desconfiei da capacidade intelectual de homens que usam bigode.
Desculpem-me os bigodudos presentes. E se não gostarem pouco se me dá como pouco se me dão, porque eu já estou morto mesmo e estou cagando para vocês, bigodudos. Nesta altura ainda não “fui a óbito”, expressão abominável da língua falada e da incompetência dos nossos hospitais, e sinto-me muito grande por conseguir ficar penalizado com a dor sincera dos meus dois filhos, do choro da minha menina sempre agarrada com a mãe como quando criança. Até a cara de égua do meu sucessor, andando pra lá e pra cá enquanto tentava encaminhar as coisas, me consternava.
Depois de duas horas finalmente fui tido pelos homens como egresso deste plano. Esta outra expressão acho que recolhi em alguma reunião espírita, na minha curta, pouco frutífera e bastante ecumênica experiência religiosa, acumulada em cinqüenta e dois anos de vida. O Miguel ouvia de um enfermeiro que meu corpo sofreria uma necropsia sumária para confirmar o que parecia evidente: morte por ataque cardíaco. A essa altura meus amigos eram um triste grupo de bêbados apalermados, a adrenalina aniquilara a bebedeira. Estavam com aquela cara estupefata de quem pulou direto para a ressaca. Encostados numa parede, pulando de uma perna para outra. Deslocados e sombrios. O Antônio chegou-se para o Miguel e inteirou-se da situação, ofereceu os préstimos. O chefe da minha família tinha uns ciúmes de mim que eram extensivos a todo o meu mundo, inclusive os amigos, por isso tratou, sendo mais gélido que meu corpo àquela altura, de dispensar a ajuda dos companheiros que certamente para ele ainda eram e sempre seriam um grupelho de bêbados patéticos. Os coitados cumprimentaram Marisa, a ingrata, e abraçaram os meninos da forma que puderam, alegaram que iam buscar umas mudas de roupa no meu apartamento, e mandaram-se. Observei-os afastando-se a passos tristes, e fiquei dividido. Temi olhar em que sombrio espetáculo meu corpo seria devassado. Marisa derramava umas lágrimas, as crianças choravam. O hospital era feio e desolador. Achei que estaria melhor com os caras.

Novo texto chegando!

Meus improváveis leitores, a partir de hoje começo a publicar aqui um novo conto meu. Espero que gostem. Se gostarem, registrem e me dêem ânimo para continuar. Se não gostarem, repensem seus conceitos. :-)
O conto anterior ("Memórias de um Náufrago") era uma brincadeira que nasceu de uma piada. Foi escrito (durante o expediente, confesso. Acho que meu chefe da época nunca lerá isto.) com a intenção de fazer rir um grupo de amigos meus, que recebia os capítulos por e-mail. Este ("O Desejo de um Morto") tem ainda muita leveza e é igualmente despretensioso, mas seu texto é um pouco mais denso. Eu diria que é mais sério. Um abraço!