.comment-link {margin-left:.6em;}

Visões do Abismo

Monday, November 29, 2004

Memórias de Um Náufrago: Capítulo XIII - O Fugitivo.

Passei a me dedicar com afinco à tarefa de construir minha jangada. Assim que ela estivesse pronta partiria daquela ilha esquecida de Deus e dos homens. A dedicação à tarefa tomou minha atenção de tal modo que minha amante acabou percebendo. Estávamos os dois uma noite na caverna. Eu esperava reunir algumas forças para voltar à aldeia, enquanto pensava como improvisar uma vela para a embarcação, e quanta água precisaria levar para a viagem, quando ela, após me olhar profunda e investigativamente por uns minutos, perguntou, manhosa:
- Que foi, benzinho? Você anda tão pensativo!
- Nada não... respondi distraidamente.
- Tenho uma surpresa pra você!
E levantou-se num salto. Puxei alguma coisa pra proteger a cabeça e esperei. Voltou com uma tigela de doce de coco!
- Fiz pra você, meu querido!
Foi bom eu já estar deitado, senão teria caído pra trás.
- Você fez isso pra mim?!?!
- Pois é! Quem havia de dizer?
E me serviu! Eu estava bobo!
- Você tá precisando de alguma coisa? - perguntei, desconfiado. - Apareceu outro escorpião que você quer que eu mate? Tem alguma pedra pra rolar de lugar? Quer que eu ponha a mão na água pra ver se já ferveu?
- Não, meu amor, só quero te agradar. Meu amorzinho merece...
E aconchegou-se toda no meu peito, ronronando como uma gatinha!
- Sabe que você nunca perguntou meu nome? Você é tão frio comigo... - Pasmem! Aquela não podia ser a mesma mulher!
- Mas eu perguntei uma vez e você perguntou pra que eu queria saber! Não lembra?
- Eu tava brincando. Você é todo sensível!
- Mas você mandou eu calar a boca!
- Era só pra testar se você tava realmente interessado ou perguntou por perguntar.
- Ahnnn... - fiz eu, aturdido. - Mas então, como é seu nomezinho?
- É Tereza. - Disse-me ela com um terno sorriso.
- Que lindo, como Tereza da praia.
- Pois é! - Tornou ela, e começou a cantarolar a canção onde dois idiotas discutem por uma mulher que sempre me pareceu que naquela hora deveria estar com um terceiro.
- Você me ama? - inquiriu ela.
- Claro! Sou doido por você.
- Fico feliz, meu amor. Você sabe que eu nunca aprendi a lidar com a rejeição? Ultimamente tenho notado você tão distante, distraído... - e me olhou com aquele ar de psicopata que ela tinha às vezes. Eu já via meu bilau cortado fora e roído pelos siris!
- Impressão sua, minha fofinha. - e me escorreu um suor frio pela espinha.
De volta à aldeia, as coisas pareciam agitadas. Encontrei Juvenal estendido sobre um colchão de palha, gemendo de dor. A tribo toda em volta. O Pajé tentava fazê-lo beber um chá medicinal de capim-santo com coca-cola. Acudi, afobado:
- Que diabo foi isso, meu povo?
Ao me ver Juvenal tentou erguer-se para me atacar, mas a dor o conteve. Ele apenas gemeu:
-Aiiiiiiiiii! Macartúrio maldito! Macartúrio miserável! Macartúrio mentiroso filho de uma...
- Mas que fiz eu, desgraçado? Por que me xingas tanto, infeliz das costas ocas?
O Pajé explicou:
- Juvenal escorrega e se lasca todo por causa de Macartúrio! Macartúrio engana Juvenal! Macartúrio num vale o que gato do mato enterra, mesmo!
- Mas eu nem vi essa besta hoje!
- Tribo nota Juvenal saindo muito, furtivo, carregando flores, roubando comida pra alguém, levando presentinhos... Pajé desconfia de Juvenal ter encontrado mulher fantasma e fazer segredo. Tribo segue Juvenal!
- Mas e daí?
- Tribo flagra Juvenal praticando ato sexual libertinoso e muito feio com criatura da natureza! Juvenal leva susto enorme, cai da ribanceira e se arrebenta todo em moita de urtiga. Bilau de Juvenal inutilizado, Missifio! Perda total! Pajé não põe remédio que não vai botar a mão nos documentos de ninguém.
- Ohhh! - Fiz eu, com uma careta.
- Pois é! Juvenal pegou em merda, Missifio. - Nisso Juvenal olhou pra mim, com fúria.
- Mas o pior é que não era uma mulher, seu miserável, era um caracol gigante, e você me enganou. Estive iludido todo esse tempo! - e virando o rosto pro lado, começou a soluçar que dava até pena.
- Ah, Fanzinha, que desilusão..! - E desatou a chorar.
- Fanzinha? - Perguntei eu. O Pajé me puxou o braço e cochichou: - É como ele chamava o caracol. Respeite a dor do semelhante, Missifio.
- Ahh, siimmm...
Fomos todos saindo da caverna, constrangidos. Juvenal acabou adormecendo, e entre um soluço e outro, ainda sussurrava:
- Ahhh, Fanzinha... você era caladona, mas a gente era feliz...

1 Comments:

Post a Comment

<< Home